Ao ler a bela História da Revolução Russa, de Trotsky, lançada pela Paz e Terra em 78, resolvi partir para um espetáculo sobre Vladímir Ilich Ulianov – Lênin, mas senti que aquele relato não me bastava. Fui à Biblioteca Central da UFPB, e nada. Frequentemente eu me valia da biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio – enorme – que mandava a todo e qualquer funcionário do BB, de qualquer parte do país, os livros que quisesse, pelos malotes da estatal. Pedi e recebi pacotes sobre o homem que – contrariando Marx – implantara a “ditadura do proletariado”, 69 anos após o Manifesto Comunista (com seu tom profético não concretizado), num país... sem proletários, não industrializado, agrário, fazendo-o através de “profissionais da revolução”, que sequer eram camponeses, criando – com a Rússia e países vizinhos — a União Soviética, que duraria até 1991. Como foi possível?
Segundo Galbraith, como sempre: com um pontapé em porta podre: o Czar abdicara, Kerensky – no seu lugar — vacilava, e aí a Revolução aconteceu sem ter sido disparado um tiro, conforme Trótski.
Bem. Aí Lênin endureceu. “Democracia sem socialismo e socialismo sem democracia – diz Bobbio — são, respectivamente, uma democracia e um socialismo imperfeitos”. Ao governar por decreto, o líder revolucionário redistribuiu terras, nacionalizou bancos e indústrias, reprimiu opositores com o chamado Terror Vermelho, e tudo foi ficando tão denso que Lênin – no comando desde 1917 — sofreu vários acidentes vasculares cerebrais em 22, morrendo em janeiro de 24. Eu me lembraria de uma foto sua, de olhos parados, arregalados, anos depois, ao ver o mesmo em meu filho, dias antes que morresse com câncer.
Conclusão: “Se eu contar tudo isso num espetáculo, será um desastre.” Desisti. O que foi um erro, pois um cão morder um homem não é notícia, um homem morder o cão, é. Mas tive uma “visita da saúde” em 81, quando Lelouch lançou “Retratos da Vida" e um colega do BB parou ante meu birô e me perguntou se eu vira o filme e o que achara do balé com o Bolero de Ravel.
⏤ Muito bonito.
⏤ Não tem vontade de botar letra naquela música?
O "Bolero" tem uma construção simples. “O mais longo crescendo do mundo" tem “duração teórica de catorze minutos e dez segundos”, “melodia uniforme e repetitiva”, e “a única sensação de mudança é dada pelos efeitos de orquestração e dinâmica, num crescendo progressivo”. Há duas partes que se alteram nove vezes, formando um conjunto de dezoito seções, sendo que... se ampliam até exatamente a metade, em que o solo inicial — em que eu via Lênin menino devidamente caracterizado – se repete (embora de outro instrumento), e ali vi Lênin adulto surgindo pela primeira vez. O novo “crescendo” terminando com a orquestra em peso vibrando com a Revolução. Bem: imaginei um espetáculo como o musical “Les Misérables”, que fora lançado com enorme sucesso no ano anterior. Mas Kaplan — para quem eu escrevera os versos da Cantata pra Alagamar e que, em 84, me pediria que colocasse letras (na linha de Brecht) nas canções natalinas, do que resultou nosso musical “Burgueses ou Meliantes?” — não se interessou. “Por que?” “Porque nos faltaria a riqueza de timbres da partitura original”.
⏤ Mas em lugar dela temos uma história, Kaplan. E solos – de tenores, sopranos, barítonos, baixos, contraltos — depois duetos, trios, quartetos, coros.
Eli-Eri também não aceitou a ideia.
Claro: o momento histórico era outro: se em 78 acontecera a emenda constitucional que revogara o AI-5 e se em 79 acontecera a “Anistia”, em 80 o movimento Solidariedade estourava na Polônia.
Houve apenas um interessado: o professor Maurício, regente do coral da Escola Técnica. Emocionou-se, cantando comigo a minha letra ao som de uma gravação do Bolero, imaginou uma banda de música em lugar de uma orquestra, etc, etc, mas foi proibido de levar a coisa avante pelo diretor.
Depois foi o Guanaes, em Natal, que se mostrou interessado, mas nossa troca de correspondência foi, aos poucos, se esgarçando, até a coisa dar em nada.
Aí veio – em 89 — a queda do muro de Berlim e, em seguida, 1991, a da União Soviética. Foi um impacto ver e rever, nos telejornais, um guindaste arrancando uma estátua de bronze do Vladímir do seu pedestal, em Gdansk, ato aplaudido por uma multidão... de operários.
Aí, por volta de 2004, 2005, vi o filme “Adeus, Lênin”, de Wolfgang Becker, que se passa em 1989, pouco antes da queda do muro, quando a Sra. Kerner tem um colapso e entra em coma, ficando desacordada durante os dias que marcaram o triunfo do regime capitalista. Quando ela desperta, Berlim Oriental bastante alterada, um outdoor da Coca-Cola ao lado de seu quarto e tudo mais, seu filho Alexander, temendo que a mãe tenha uma recaída ao se inteirar da reviravolta, lhe esconde os fatos. É um impacto, o dela, o meu, quando ela resolve dar uma volta fora de casa e dá com um bronze de Lênin pela metade (como o de Gdansk) sobrevoando a rua, içado por um helicóptero (como a estátua de Cristo em “A Doce Vida, de Fellini, de 1960) , ela sentindo exatamente o que eu sentira ao me perceber “out” a respeito de tudo que acontecera e estava acontecendo.
Da minha auto b/i/o grafia em fase de enxugamento