A abóbada celeste já estava ali, a olhos vistos. Não a cúpula que ostenta os céus ao redor da Terra, bem acima dela, mas o monumental teto do Royal Albert Hall, em Londres. Tudo brilhava com os mágicos efeitos de sua magnífica iluminação, em sintonia com a luz que contornava a aura coletiva de uma plateia em burburinho, já encantada com o porvir.
O hino “Vem, Espírito Criador” explode com o órgão, a grande orquestra, os quatro corais, dando início à “Sinfonia dos Mil”, como é conhecida a 8ª sinfonia de Gustav Mahler. A plateia, calada por dentro e gritando na alma, entra em sintonia com a mensagem:
O hino “Vem, Espírito Criador” explode com o órgão, a grande orquestra, os quatro corais, dando início à “Sinfonia dos Mil”, como é conhecida a 8ª sinfonia de Gustav Mahler. A plateia, calada por dentro e gritando na alma, entra em sintonia com a mensagem:
Vinde Espírito Criador,
visitai nossa alma
com vossos dons celestiais.
A nossa mente iluminai,
os corações enchei de amor
[…]
Se pela graça nos guiais,
o mal deixamos para trás.
Era um domingo à tarde. Quase um “domingo no parque”, pois vizinho ao grande teatro, inaugurado há um século e meio pela Rainha Vitória, está o “Hyde Park”: Estávamos No Royal Albert Hall — majestoso anfiteatro coberto, estruturado e adornado com elementos e alegorias da arquitetura clássica romana, onde já se apresentaram grandes nomes da música, da dança, da ópera, do rock, inclusive os Beatles, capaz de abrigar quase 10 mil pessoas.
A eloquência do tradicional e milenar hino cristão, “Veni, Creator Spiritus”, escrito pelo monge beneditino, Rábano Mauro — abade nascido na Mogúncia (Alemanha) dos anos 780 d.C. —, provocava enlevo celestial reforçado pela beleza e grandiosidade sinfônica. Nos diálogos dos sete cantores solistas, individual ou coletivamente, com a Royal Philharmonic Orchestra e os quatro corais, sob a regência do jovem maestro russo Vasily Petrenko, entre glórias e louvores, o êxtase se consagrava .
A resenha do programa já nos havia informado: “Desde o estrondoso acorde do órgão e do triplo coro da abertura, a sinfonia entrega sua mensagem de redenção, com forças inimagináveis, transcrita à mais épica sinfonia de Mahler”. E quem poderia mesmo imaginar que tal força nos levasse aos céus? Com sentimento que independe totalmente de qualquer vivência ou conhecimento de música, a sinfonia proporcionava um estado catártico inevitável. Não era preciso entender, ter estudado música, saber ler partitura, nada disso. Apenas escutar, ver, vivenciar, sonhar.
De vez em quando, os ouvidos impulsionavam os olhos à abóbada que brilhava ao som mágico dos antigos louvores, ora recriados por Mahler. O olhar girava pelos contornos circulares e caía embevecido, de volta ao grande palco, com quase 500 músicos, cantando e tocando com todo seu “espírito criador”.
Na segunda parte, o Fausto de Goethe completa-nos a ascensão aos céus. Após refletir sobre suas frustrações em ter experimentado todos os prazeres materiais concedidos pelo pacto com o demoníaco Mefistófeles, que nenhuma felicidade verdadeira lhe acrescentaram, ele começa a “acordar” . Seu olhar para o mundo terreno, que não lhe trouxera o enlevo almejado pelo espírito, lançava-se agora às belezas da natureza, de seus bosques e cânions, assim como para dentro de si, transpondo-o à compreensão maior da vida. Mahler escolheu a segunda parte do Fausto justamente por se afinar com a transcendência que pretendia impingir aos ouvintes, desde quando a concluiu: “Terminei há pouco minha Oitava Sinfonia… vai ser uma coisa que ninguém no mundo jamais ouviu. A Natureza inteira fala através dela… É minha maior obra até agora… Imagine o Universo começando a soar e a ressoar. Não são mais vozes humanas. São os planetas e os astros girando em suas órbitas… Minhas sinfonias todas até agora não passam de prelúdios para esta” - escreveu ao maestro Willem Mengelberg, seu grande amigo.
Mahler realmente conseguiu nos trazer os céus, na Oitava. E com ela, para lá, nos levar, tal como nos transportou nesta tarde tão especial, do Royal Albert Hall, onde milhares de pessoas se encantaram. Inclusive eu, sobretudo quando soube, ao final do concerto, que minha querida cunhada, Dione, cochichou ao ouvido de sua irmã, Djane: “Mana, parece que eu estou no céu”. Justamente na hora em que Fausto ascende aos páramos celestes, após ser reverenciado por Maria Madalena, Maria do Egito, por sua Margarida (Gretchen), pelos anjos e, finalmente, por Nossa Senhora, que lhe dá as boas vindas, representada pela solista que aparece fora do palco, lá em cima, perto do órgão, quando ele se entrega fervorosamente:
Vejo o olhar do Salvador,
Como estou arrependido!
Vejo a felicidade abençoada,
transformada em agradecimento!
Virgem, Mãe, Rainha,
Deusa, tenha piedade de mim!
É quando os quatro corais se preparam para o grande final. Crescem unidos, mulheres, homens, crianças e solistas, juntam-se à orquestra em contrapontos, cantos e acordes que mais parecem raios fúlgidos entoados por toda a abóbada, e muito além dela, com uma obra que há mais de um século leva plateias inteiras aos céus. Como bem levou Dione, enternecida, a dizer: “Mana, parece que estou no céu”... Coberta de razão e sensibilidade. Afinal, todos estávamos. No céu de Mahler, no céu de Goethe, no céu de Deus, no Espírito Criador!