Há quem não se dê conta de que um texto, literário ou não, é algo fabricado, urdido, constituído de uma estrutura bem montada. Claro que me refiro aos textos bem escritos, que sugerem, apenas sugerem, ao leitor terem sido escritos com facilidade. Nem sempre. Para um texto parecer fácil, o leitor nem imagina a dificuldade por que passou o escritor para chegar até ali. Por outro lado, sabemos identificar muito bem o texto artificioso e, com mais facilidade ainda, o mal escrito, pela escrita forçada, pela falta de lógica ou de concatenação entre as suas partes. Dizer, portanto, que um texto é uma estrutura, é reconhecer que
há algo que o mantém em pé, pela união de suas partes, afinal no termo estrutura, encontra-se a raiz do verbo struo, struĕre, em latim, que significa dispor em camadas, dispor em ordem, erigir, construir.
Já a palavra texto origina-se do verbo tecer, em latino texo, texĕre, cujo supino, é textum, derivando daí o adjetivo participial textus, tecido, de que, por sua vez, se deriva o substantivo neutro textum, aquilo que foi tecido, que pode ser uma roupa ou qualquer objeto que tenha passado por uma urdidura ou trama. E o texto, como objeto de uma escritura, não é senão uma roupa com que se vestem os seus vários sentidos, roupa que deve ser destecida, desurdida, retirada, se queremos conhecer a essência que ele esconde.
Este introito vem em decorrência da leitura atenta que se deve fazer de um texto, para que a sua fruição possa ser alcançada. As leituras apressadas nos fazem passar por cima da beleza da sua construção, que mereceu de seu autor um esmero muito grande. Digo isso pensando na Divina Comédia, cuja excelência textual só pode ser degustada com paciência, indo à minúcia, ao detalhe e buscando compreender algumas sutilezas de sua construção. Darei apenas alguns exemplos, envolvendo os dois primeiros Cantos.
Comecemos dizendo que os dois primeiros Cantos funcionam como um Proêmio funcionaria para o poema épico, apresentando uma Proposição (Canto I) e uma Invocação (Canto II). No Canto I, Dante sabe que deverá fazer uma viagem tendo Virgílio como seu guia, pelo Inferno, onde estão “os antigos espíritos dolentes” (antichi spiriti dolenti, verso 116) e pelo Purgatório, lugar “dos que estão contentes/no fogo, porque esperam, quando seja, de chegar às beatas gentes” (color che son contenti/nel foco, perché speran di venire/quando che sia a le beate genti, versos 118-120), até chegar ao Paraíso, onde se encontram as “beatas gentes”, e por onde espírito mais digno deverá guiar Dante, ação impossível a Virgílio, por ter vivido, em Roma, no tempo dos falsos e mentirosos deuses (nel tempo de li dèi falsi e bugiardi, verso 72). Virgílio diz estar, de acordo com a lei divina, “entre os suspensos” (Io era tra color che son sospesi, Canto II, verso 52). Só no Canto IV é que sabemos por Dante que os “suspensos” são os que se encontram no limbo (Gran duol mi prese al cor quando lo ‘ntesi,/però che gente di molto valore/conobbi che ‘n quel limbo eran sospesi, versos 43-45). Virgílio, portanto, na sua condição de habitante do limbo, será o guia que levará Dante até o local eterno (io sarò tua guida,/e trarrotti di qui per loco etterno, Canto I, versos 113-114). A Proposição está anunciada.
No Canto II, Dante faz a Invocação, solicitando às Musas dar-lhe a capacidade para que o que ele viu seja por elas escrito, manifestando a sua (delas) nobreza (versos 7-9):
O muse, o alto ingegno, or m’aiutate;
o mente che scrivesti ciò ch’io vidi,
qui si parrà la tua nobilitate.
O poeta vê e as Musas escrevem, com o engenho, com a inventividade que lhes é própria, como divindades da memória, das artes e das ciências. Trata-se de uma Invocação dentro do parâmetro exigido pela épica clássica ou pelos hinos aos deuses. Sem as Musas, o poeta não poderá expressar o que sente ou o que vê. É necessário que o sopro divino da poesia, que neles se encontra, soprado em sua boca pelas Musas, seja chamado a agir e se realizar como matéria poética.
Com relação à tecedura da narrativa da Commedia, podemos iniciar dizendo que sem a leitura, pelo menos, do Livro VI da Eneida, não é possível usufruir do texto de Dante a contento. Observe-se que este episódio do poema épico de Virgílio – a descida de Eneias ao Inferno –, já é bem referido no Canto II (versos 13-24 e verso 32). Assim como Eneias, Dante está descendo ao inferno vivo (ad immortale/secolo andò, e fu sensibilmente, versos 14-15). Não sendo, no entanto, Eneias ou São Paulo, “o Vaso de eleição” (Vas d'elezïone, verso 28), que também andou no inferno, como ele, Dante, poderia empreender tal viagem, que considera insana (folle, verso 35), por não se achar digno de tamanha empresa (me degno a ciò né io né altri 'l crede, verso 33). Vê-se aí, portanto, o “Domine, non sum dignus” do Evangelho...
Virgílio lhe dará as razões para a realização dessa viagem perigosa, tendo-o como guia. Dante deve enfrentar as adversidades de uma alma cheia de máculas (l'anima tua è da viltade offesa, verso 45), se quiser voltar para o caminho da luz. Nesses dois primeiros cantos, em que Dante e Virgílio se encontram na selva selvagem e escura, não há condenados, nem almas à margem, o que só será possível ver quando os dois poetas adentram o Vestíbulo do Inferno, onde se encontram os excluídos, de modo a fazer a travessia do Aqueronte, na barca de Caronte (Canto III). A chegada ao Primeiro Círculo, onde se situa o limbo (Canto IV) é a parte mais agradável, pois não há punição. A descida começa na passagem do Primeiro ao Segundo Círculo, num afunilamento que permite, pela proximidade, maiores punições. A nosso ver, trata-se de uma viagem que, mais do que um rito de passagem, busca a plena transformação da alma humana, numa transcendência ainda em vida.
Apontemos, então, quatro momentos que nos mostram uma construção do texto, devidamente conectado em suas partes constituintes. O primeiro deles está no Canto I, quando Virgílio relata a Dante a viagem que eles deverão fazer, do Inferno ao Paraíso. No Paraíso, local da “beata gente”, impossibilitado de lá entrar pela situação que já explicamos, Virgílio lhe diz que haverá uma alma mais digna do que sua para guiá-lo (anima fia a ciò più di me degna, verso 122). A alusão à “beata gente” já antecipa esta alma digna, que não é outra, senão Beatriz, só denominada no Canto II. Não esqueçamos que Beatriz (Beatrix, em latim) significa “a que gera a beatitude, a felicidade, a bem-aventurança”.
No Canto II, quando Virgílio explica a Dante a razão por que ele deve acompanhá-lo, tomando-o como guia, o poeta latino diz que foi chamado por “dona, beata e bela” (e donna mi chiamò beata e bella, verso 53), para este serviço. A dona, em seguida, se apresenta e diz chamar-se Beatriz (I' son Beatrice, verso 70) e que descera abaixo de sua alta condição (venni qua giù del mio beato scanno, verso 112) até ali, para pedir-lhe o cumprimento de uma missão que lhe trará consolo, encadeando, assim, o adjetivo beato/beata a seu nome.
O segundo momento se dá quando do surgimento de Beatriz diante de Virgílio e o poeta percebe que seus olhos luziam mais que a estrela (Lucevan li occhi suoi più che la stella, verso 55), levando-nos a supor que a estrela referida é o Sol. Ora, para ajudar Dante, a Virgem Maria (Donna è gentil nel ciel, verso 94), chama Santa Luzia (Lucia, verso 97), de quem Dante é devoto, dizendo-lhe da necessidade de sua ajuda àquele que lhe é fiel (Or ha bisogno il tuo fedele/di te, versos 98-99). Luzia, por sua vez, pede a ajuda de Beatriz para aquele que tanto a amara e que tanto se destacara do vulgo, por este amor e pela sua qualidade de poeta (ché non soccorri quei che t’amò tanto,/ch’usci per te de la volgare schiera?, versos 104-105). Lembremos que, antes da Commedia, Dante escreveu Vita Nuova, livro de versos louvando a amada, que só vira duas vezes na vida, uma aos 9 outra aos 18 anos... Nessa apresentação de Beatriz por Virgílio a Dante, vemos a antecipação da referência a Santa Luzia, tendo em vista a mesma raiz que compartilham entre si o verbo luzir (lucere) e a substantivo Luzia (Lucia, verso 97).
O terceiro momento diz respeito ao epíteto de Beatriz, evocado por Santa Luzia – “Beatriz, louvor verdadeiro de Deus” (Beatrice, loda di Dio vera, verso 103). Depois de ouvir de Virgílio que houve, no céu, a intercessão de três donas benditas (tre donne benedette, verso 124), em seu favor, Dante não precisa de mais argumento, para ver a sua virtude cansada (virtude stanca, verso 130), renovada em ardor no coração (e tanto buono ardire al cor mi corse, verso 131) e seguir Virgílio, como seu guia, senhor e mestre (tu duca, tu segnore e tu maestro, verso 140), por caminho tão difícil. O maior dos argumentos é que Beatriz lhe exprimiu palavras verdadeiras (le vere parole che ti porse, verso 135), assim como ela é o verdadeiro louvor de Deus.
Por fim, a cereja do bolo. Beatriz, ao aparecer a Virgílio e pedir sua intercessão, de modo a ajudar Dante, diz que sua descida do Paraíso se dá pelo amor, que a move e que a faz falar (amor mi mosse, che mi fa parlare, verso 72). Claro que não se trata do amor sensual ou erótico, mas o amor charitas, o amor espiritual, tendo em vista a sua condição de criatura celeste. Dante nos mostra sutilmente que, para atingir a transcendência ainda vivo, precisamos do concurso do amor. Só o amor é capaz de transformar as pessoas e fazê-las enfrentar as adversidades.
Tomando o poema como um todo – Inferno, Purgatório e Paraíso –, vemos que o seu final se coaduna com o que diz Beatriz a Virgílio. Após terminada a sua viagem, tendo chegado ao Paraíso, Dante percebe que a sua vontade, o seu querer como homem individual, foi mudado por um fulgor que o atinge (mia mente fu percossa/da un fulgore – Paradiso, Canto XXXIII, versos 140-141), que lhe vence a fantasia. Este fulgor é Deus, simbolizado no amor que move o Sol e as outras estrelas (l’amor che move il sole e l’altre stelle, verso 145).