Ela nunca tocara tão bem até então. O artista sabe. Sempre. Quando se sai bem e quando não. Quando se sai mais ou menos também. O artis...

O silêncio de Iago

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Ela nunca tocara tão bem até então. O artista sabe. Sempre. Quando se sai bem e quando não. Quando se sai mais ou menos também. O artista não precisa da crítica, pelo menos não sempre. Pois ele, lá no fundo de si mesmo, sabe. Ou desconfia. As críticas favoráveis certificam-lhe o que ele já sabe – ou pressente -, mas servem-lhe de afago, de confirmação, coisas tão necessárias para o ego inseguro quanto água para os sedentos. Por isso ela estranhou aquele silêncio vindo de quem ela menos esperava. Que ocorrera? Ela queria entender.

A amiga, uma das poucas que tinha e em quem confiava de coração aberto, pois sempre correspondera às suas expectativas, acompanhava sua modesta carreira desde o início. Sempre com entusiasmo, incentivando-a,
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Ehsan Ahmadi
elogiando-a mais do que o razoável, como costumam fazer os que amam, os que julgam com amor. Era, antes de cada concerto, uma de suas primeiras ouvintes, pois sua opinião tinha valor, em todos os sentidos. Quando fazia alguma observação, contribuía para seu aperfeiçoamento; quando aplaudia, sem restrições, dava-lhe o ânimo indispensável para entrar em cena. Era assim. Ou costumava ser assim.

Mas dessa vez, não. Exatamente quando de sua melhor performance, quando era legítimo esperar algum louvor, a amiga calou-se, nada disse. Fechou-se em copas, como se diz, inexplicavelmente. Nada falou de bem e nada falou de mal. Simplesmente, não falou nada, nada de nada, como se sua apresentação, tão bem recebida pelo público, não tivesse existido para ela, a amiga tão próxima. Como aceitar esse mutismo de alguém que sempre fora, até então, o exemplo da eloquência entusiasta? Como interpretar essa apatia em quem sempre fora a primeira a correr para abraçá-la ainda no palco?

O leitor já viveu situação parecida? É possível que sim, pois a vida se repete em suas histórias, suas tramas, mudando apenas os atores, como mudam os intérpretes nos filmes refilmados. Há muito que nada há de novo sob os céus. Representamos personagens de peças antigas que pensamos ser novas, porque, ingenuamente, costumamos atribuir às nossas experiências, boas ou não, o selo de uma originalidade inexistente. Essa a razão da velha pergunta que nos vem à boca ou ao pensamento nas dificuldades: Por que comigo?
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Ehsan Ahmadi
Ora, ora, meu caro, minha cara, não és o(a) primeiro(a) nem serás o(a) último(a). Por que não contigo, cara pálida?

Mas voltemos à amiga emudecida. Ela a acompanhara em todos os passos de sua exaustiva preparação. Ouvira com atenção o som de cada nota, seguira cuidadosa cada melodia, a ouvinte perfeita, a plateia ideal. Incentivara-a, aplaudira-a, abraçara-a. Sempre tinha sido assim das outras vezes. Portanto, terminada essa última apresentação era justo esperar por ela, por sua palavra confortadora, seu abraço único. Mas essa palavra e esse abraço não vieram. Pior: foram os únicos ausentes em meio a tantas manifestações animadoras dos mais distantes.

Essa foi, realmente, a nota mais estranha de todas: os mais afastados compareceram com seu aplauso além do normal. Expressaram, como nunca antes, elogios inesperados, fazendo-a acreditar, pouquinho que fosse, em seu talento de concertista. Finalmente, algum crédito dado ao seu esforço, que já vinha de longe, uma labuta constante de anos, vagamente reconhecida por poucos. E agora que o milagre acontecera, faltava-lhe exatamente aquela que sempre esteve ao seu lado, desde o início.

Passaram-se dias e meses, e o silêncio da amiga persistia. Era como se aquele concerto consagrador nunca tivesse havido. Nenhuma palavra sobre ele nas conversas entre as duas depois do evento. Ela, mesmo sem compreender, esperava. De sua parte, evitava tocar no assunto; não queria provocar o pronunciamento da amiga muda, se muda ela insistia em continuar àquele respeito.
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Ehsan Ahmadi
Como negar que sofreu por conta daquele silêncio injustificado? Como negar que a palavra carinhosa da amiga fez muita falta? Mas aceitou tudo silenciosamente, como se deve. Não foi pedir – nem pediria nunca – satisfações. Era uma pobre orgulhosa. Sempre seria. Com muito orgulho.

Muito tempo depois, após muita reflexão e à vista dos fatos que se sucederam, ela foi compreendendo devagarinho, boquiaberta. Descobriu, finalmente, com espanto e tristeza, o motivo por que emudecera a amiga antes tão loquaz: ela perdera a língua tão somente por inveja. Sim, por inveja, simplesmente, e nada mais. Seu pequeno êxito provinciano fora demais para a outra, que agora escondia o mesquinho – apesar de tão humano – ressentimento sob o silêncio indisfarçado. Infelizmente isso acontece, ela sabia. Até entre irmãos.

À sua lembrança veio logo a persona de Iago, aquele coitado que não suportou o sucesso de Otelo, o general vitorioso de Veneza e dono do coração da bela Desdêmona. O que a tranquilizou foi saber que a amiga ressentida não chegaria certamente aos excessos cometidos pelo falso amigo do mouro laureado. Até porque fora desmascarada a tempo, antes que pudesse fazer-lhe qualquer mal maior. Estava, afinal, tudo esclarecido, tudo explicado. O genial inglês muito ajudara, fazendo-a ver a velha fraqueza da humanidade. Grande Shakespeare. Sempre atual.

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