Desde a minha infância que sei da “existência” dela. Quando crianças, muitas noites, antes de dormir, nós nos deitávamos no chão para ouvir histórias assombradas, contadas por nossas auxiliares, quase todas originárias do interior do estado. Eram histórias muito ricas de detalhes, de nomes, de escadas rangentes, corredores escuros, pianos que tocavam sozinhos, sempre à noite, e sótãos mal-assombrados.
Lobisomens, caiporas, almas de todos os tipos. Almas com um dente só, longo, sentadas acima da porta da igreja, inexplicavelmente com as pernas balançando, os pés arrastando no chão. A célebre história do anel roubado do dedo amputado do cadáver, que terminava num susto. A história do “Eu caio!”, que não sabíamos se tínhamos medo ou caíamos na risada.
A princípio, mais novos, não conseguíamos dormir. Mas com o tempo essas histórias se foram incorporando ao nosso folclore. Elas foram o embrião do nosso gosto por contos de terror. As nossas empregadas foram as nossas precursoras de Edgar Allan Poe, Bram Stoker, Mary Shelley, Anne Rice, Stephen King, H. P. Lovecraft.
Sempre achei que o trabalho mental à noite é mais producente. Sem menino fazendo zoada, o barulho dos carros lá em baixo diminuindo bastante, o celular desligado.
Por essas horas as duas cachorras salsichinhas, Minie e Merilú, só querem saber de dormir. A gatinha Lince, que só tem três perninhas, já é uma senhora respeitável e não aceita mais provocações de Luna, a gatinha travessa.
Esta, sim, uma mocinha ainda saindo da infância esticada, mexe com uma, mexe com outra, buscando companhia para brincar. Como nenhuma engole a provocação, ela vem saber o que eu estou fazendo no gabinete.
Sobe na bancada do computador, e súbito a patinha aparece por debaixo do monitor, tentando pegar os meus dedos. Depois arrodeia e vem ver o que estou escrevendo.
Logo bate o tédio. Pula para a mesa de xadrez, lê os títulos dos livros que estão enfileirados, escolhe um, começa a folhear. Mas desiste, e deixa de lado. Lambe toda a sua “roupa”, lavando-se escrupulosamente. Fica quieta, aperta os olhos...
... E adormece. A partir daí tenho toda a tranqüilidade para ler, pesquisar e escrever. É quando começo a sentir a sua presença.
Quase todas as noites eu sinto a presença dela. Tarde, bem tarde, noite já alta, todo o prédio dormindo, Ilma recolhida ao quarto, eu sinto que ela está por perto. Pois é quando chega a mim um delicioso aroma perfumado. Cheiro de flores.
Não sei de onde vem. Mas fico imaginando que ela desça os degraus da escada de serviço silenciosamente, suavemente, passo a passo, e se detém aqui no nono andar, às portas do meu apartamento. Felizmente não entra, penso às vezes.
Nunca ouvi os seus passos, tal a leveza com desce a escada. Nunca consegui vê-la. Mas imagino como ela seja. Desce a escada nua, bem pálida, os pés descalços, trajando um vestido longo de gaze branca transparente, cabelos longos negros, portando na mão um buquê de florzinhas brancas, que exalam o cheiro que a caracteriza. Geralmente ela passa despercebida. Mas às vezes uma das cachorras late, vagamente. E volta a dormir.
Muitas vezes abri as portas, mas nunca encontrei nada, senão o delicioso aroma de flores. Gostaria de conhecê-la, de ao menos vê-la. Quem sabe, passado o susto, recuperada a voz, pudesse indagar de sua história, por que escolheu este prédio, onde até hoje, felizmente, ninguém faleceu, nestes 20 anos de moradores.
Quem sabe ela seja bem atualizada, moderninha, freqüentadora de redes sociais, e me falasse do momento que estamos vivendo. Me desse alguma esperança de ver um Brasil melhor, mais pacífico, mais unido.
Quem sabe, ela me diz onde encontrar uma boa botija, como nas velhas histórias! Pois é tudo isso o que eu espero da minha Alma com Perfume de Jasmim, todas as vezes que me visita.
Nota do autor: A canção Maninha, de Tom Jobim, faz referência à Alma com Perfume de Jasmim.