Quando a escritora inglesa Virginia Woolf foi convidada para dar uma palestra sobre As Mulheres e a Ficção, ela sentou-se à margem de um rio e começou a pensar sobre o sentido dessas palavras e observou o rio que refletia o que bem quisesse de céu e ponte, e árvore flamejante. Woolf pensava: “Hoje vi uma mulher… hoje vi um avião… tudo pode acontecer quando a feminilidade tiver deixado de ser uma ocupação protegida… Mas que relação tem tudo isso com o tema… As mulheres e a ficção?”, perguntava ela. Já eu, por esses dias, também pensei sobre as mulheres e suas escritas. Hoje vejo um mulherio de mulheres; uma colcha de retalhos, e o que terá acontecido já que a feminilidade já não é uma ocupação tão protegida assim?
No Feminist Dictionary, de Cheris Kramarae e Paula A. Treichler, (Pandora, Londres, 1985), a palavra Woman/ Mulher tem 6 páginas de definições e comentários e mais: Woman - woman and labour, woman identifier, womanism, womanity, womanliness, womanly, womannifesto, woman question, woman's place, women, womb, woman's righter, woman's work, woman and language, women of colour, women's burden, health, woman's liberation, women's page, status, war, studies, vocabulary, wonder woman… Mulher/Mulheres, quantas correlações!
Mais de trinta anos depois, aparece a palavra MULHERIO, num evento/movimento que aconteceu entre 12 e 15 de outubro de 2017, em João Pessoa. Quando ouvi primeiro o nome Mulherio das Letras, gostei tanto! Imaginei mulheres muitas, “acolegadas”, jogando conversa fora, seguidas das imagens de brisa e coqueiros da nossa cidade. Depois ouvi que a palavra poderia ser pejorativa, que tinha conotações outras (negativas inclusive!). Lembrei-me da Marcha das Vadias, que também teve implicações semânticas. E gostei. Gosto da transgressão das “Vadias”. E, particularmente, gosto de Mulherio também, e acho que transcende o sentido mais dúbio se o tem, para um lado mais solidário e de braços com a sororidade.
E o que foi esse Mulherio das Letras? Tomo emprestado respostas da matéria feita pelo jornalista Linaldo Guedes para o Correio das Artes, à época:
“Um momento para o fortalecimento, a troca de experiências, a geração de projetos e parcerias entre as mulheres que produzem e promovem a literatura no Brasil...tem como proposta dar visibilidade aos trabalhos desenvolvidos por mulheres no mercado literário, Queremos criar um movimento, algo que marcará a história e trará igualdade. É algo prático, além de ideológico”.
A ideia do Mulherio surgiu com a consagrada escritora paulista, radicada há décadas na Paraíba, e ganhadora do maior prêmio brasileiro de literatura, o Jabuti, Maria Valéria Rezende. Na Flip de 2016, numa conversa com outras escritoras, surgiu a necessidade desse encontro. A forma? Cooperativa e mais orgânica, no sentido de trocas de experiência. Com uma festa de abertura, e depois alguns pontos da cidade foram tomados por atividades lúdicas ou não das mulheres. A Fundação Casa José Américo, O Espaço Cultural, a Tamarindeira – Espaço Criativo, Espaço Psicanalítico EPSI, PB Tur, Energisa, foram alguns desses lugares.
Muitas Mulheres que, juntas, fizeram um alvoroço em torno de literatura, escrita, escritoras, Mulherio das Letras Pretas, edição e distribuição de livros, criação, colcha de retalhos, poesia, resgate, Revistas, performances, cartas, rodas de conversas, diálogos,...Nunca se viu tantas mulheres circulando, animadas por tantos textos, dilemas, alegrias coletivas ou individuais.
E tantos aplausos para muitas e tantas… Destaque para a Anayde- Revista eletrônica de cultura feminista – Raquel Stanick, Mabel Dias, Mayara Vieira, Cris Estevão, Tatiana Fraga, Thamara Duarte, Cassandra Figueiredo, Thais Gualberto, Sandra Raquew. Para Lara Bioni (que conheci pequenininha, amiga de Daniel, meu filho) – e seu - Visto Permanente Mulheres; Laís Chaffe, Blasfêmeas; Cidade Poema; Cantonera Caleidoscópio, Loas de Chegança, Grupo Sinta a Liga, Cria por Elas, Outras Carolinas, Glaucia Lima, Socorro Lira, Mariposa Cantonera, Vozes, Escaleras, Bondelê (e as meninas Mariana e Carolina).
Durante o primeiro Mulherio, tive a oportunidade de fazer parte de uma roda de entrevistas para a TV Cabo Branco, junto com as também escritoras Letícia Palmeira e Marília Arnaud. E nos jardins da Fundação Casa José Américo, com os cabelos voando junto com os coqueiros, falamos de: Escrita Feminina? Crônica? Contos? Distribuição de Livros, Internet, questionamentos outros? Conquistas das mulheres e das escritoras, o feminino, O Mulherio, a troca, etc.
Depois, na Livraria do Luiz, e ainda com outra escritora Débora Gil Pantaleão, nos apresentamos e falamos de uma indicação de livro importante na nossa trajetória. Débora indicou peças de Sarah Kane, Letícia Palmeira , Ligia Fagundes Telles, A Disciplina do Amor, e eu falei de Um Teto todo seu e Virginia Woolf, que também cito por aqui.
Woolf falava que, para a criação de arte acontecer, era preciso três coisas: independência financeira, lazer ou tempo diletante, e um espaço todo seu (que podia ser um quarto, ou ainda um espaço literário, simbólico ou subjetivo). E passeando pelos jardins do Cabo Branco, pude sentir que, não mais nos cascalhos das Universidades de Oxford/Cambridge, caminhavam as mulheres. Elas ali, se lambuzavam de falas no auditório, ou cantoria no jardim, ao ouvir Conceição Evaristo (premiadíssima escritora de Ponciá Vicêncio - 2003, Becos da Memória (2006), Histórias de leves enganos a parecenças (2016), a falar de Maria Firmina Reis (1925-1917), Maranhense que em 1825 foi considerada a primeira romancista brasileira, autora de Úrsula, o primeiro escrito por uma mulher negra brasileira. Tanto Úrsula como Maria Firmina só conhecemos graças aos estudos das mulheres, da crítica feminista, trazidas à luz pela academia, suas áreas de pesquisa e conhecimento, a partir dos anos 70. Presente também a professora /pesquisadora da UFMG Constância Lima Duarte (Literatura e Feminismo no Brasil: Trajetória e Diálogo), uma das figuras de proa das áreas do resgate e visibilidade de escritoras esquecidas, e pesquisadora da vida de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), com o exemplar fresquinho de uma nova edição de Úrsula, para que as gerações mais novas não esqueçam de quem abriu caminhos, pensou nossos caros temas e levantou voz em tantos silêncios milenares.
As mulheres sempre escreveram, dizia Woolf, mas seus escritos se perderam nos velhos diários, ou trancafiados nas gavetas, ou ainda obstruídos nas memórias do tempo; ou ainda nos corredores sombrios da História onde as figuras das gerações das mulheres estiveram enevoadas e tão tacanhamente percebidas (“Women and Fiction”). Woolf também justificava a ausência das mulheres nas artes e na escrita: “como posso incentivá-las mais a empreenderem a tarefa de viver? Nunca fizeram uma descoberta de qualquer importância...nunca sacudiram um império...as peças de Shakespeare não são de sua autoria...qual a sua desculpa? Sem nosso trabalho esses mares não seriam navegados e aquelas terras férteis seriam um deserto. Geramos e alimentamos e lavamos e instruímos, talvez até os seis ou sete anos de idade....
Nas últimas décadas, os diários e as gavetas foram abertas, os corredores alumiados, e gerações de mulheres explodiram com suas escritas. Em 1986/87 o ano em que fiz mestrado na University of Warwick (Inglaterra), o boom das mulheres e escrita eram visíveis nas vitrines que ostentavam tantas edições dos romances de Jane Austen, as irmãs Brontë , a própria Woolf, Rebecca West e livros de crítica feminista. Meus olhos se arregalavam de tantas visões incandescentes a respeito de tantas histórias de voz e silêncio.
Quando vi muitas mulheres lançando tantos livros infanto-juvenil, romances, crítica, contos, poesia, incluindo tantas autoras paraibanas: Joana Belarmino, Letícia Palmeira, Ana Apolinário, Madalena Zaccara, sem falar em produções anteriores de tanta gente, fiquei a pensar nas palavras dessas mulheres que nos antecederam, que usaram de pseudônimo; aquelas que viveram diante da indiferença do mundo e que os cânones literários tiveram tantas dificuldade de suportar, e a quem os homens perguntavam: “Escrever? E o que há de bom em você escrever?” (Woolf, Um teto todo seu).
E nas minhas divagações, como não lembrar das palavras proféticas de Woolf quando disse:
“Minha crença é que essa poetisa que nunca escreveu uma palavra e que foi enterrada numa encruzilhada ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças contínuas".
E de louças e filhos, e de encruzilhadas e palavras ditas ou não, fazemos o mulherio nosso de todo e cada dia. E esse, das letras, mostrou a que veio. Construiu-se em rede nacional, em colaboração com as vivências compartilhadas, e cria, há 5 anos, novas formas de acontecer!