Se me perguntassem qual o escritor mais metódico da literatura brasileira, eu responderia sem pestanejar: Mário de Andrade. E isso não só por conta de sua produção abranger quase todos os gêneros literários, mas, sobretudo, por sua correspondência ativa, por sua compulsão em responder, indistintamente, quer ao poeta federal, quer ao estadual, quer ao municipal, inclusive àquele perdido e extraviado nas bibocas, nos grotões, nas brenhas desse Brasil de oito milhões de quilômetros quadrados. Não há dúvida: Mário de Andrade foi o escritor mais metódico da literatura brasileira de todos os tempos.
Quanto à compulsão epistolar que o movia a responder a tudo e a todos, ele mesmo o diz ter sido ela proveniente de uma grande frustração com Vicente de Carvalho, a quem escreveu inteirando-lhe de sua imensa admiração. Aguardou inutilmente a resposta do parnasiano, inclusive que ele dedicasse alguns comentários a respeito do soneto que lhe encaminhou timidamente, fruto dos seus verdes anos. Tudo em vão. Vicente de Carvalho simplesmente deu-lhe o silêncio como resposta. O que serviu de combustível para o autor de “Paulicéia desvairada” transformar-se numa espécie de missivista-conselheiro, preceptor dos jovens escritores da época, a exemplo de Fernando Sabino, com quem trocou uma farta e instigante correspondência sobre os mais variados assuntos, sobretudo a propósito da literatura.
Assim como, vez por outra, retiram poemas novos, inéditos, do já famoso baú de Fernando Pessoa, também surge, de tempos em tempos, mais um livro reunindo a correspondência ativa e passiva de Mário de Andrade com este ou aquele escritor. É o Mário inesgotável, infinito, multifacetado, trezentos-e-cinqüenta, cujas cartas são a fonte perene de onde jorra o calor do seu afeto, de sua palavra amiga, orientadora, aos escritores neófitos, principiantes, como se principiantes e neófitos não fossem todos os escritores, mesmo os que atingem a idade mais provecta.
“Macunaíma”, juntamente com “Paulicéia desvairada”, é uma de suas principais obras de referência. Obra que, não obstante ungida e incensada por meio mundo, principalmente pelos professores da USP, para mim não passa de uma experiência malograda. Tanto que somente a li por mero dever de ofício, a duras penas, pois nunca uma personagem me soou tão artificial e postiça quanto este “herói sem nenhum caráter”. E também sem nenhuma graça, sem nenhum humor, assemelhando-se, pelo menos nesse aspecto, à maioria quase absoluta dos poemas-piada de 22.
Mas, a respeito de “Macunaíma”, deixemos que nos fale o José Lins do Rego de “Espécie de História Literária”, ensaio de “Gordos e Magros”, livro que já faz por merecer uma urgentíssima reedição: “A língua de Mário de Andrade em ‘Macunaíma’ nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito. (...) o seu herói é tão pouco humano e tão artificial quanto o boníssimo Peri, de Alencar”. E arremata: “Se não fosse o autor um grande poeta, seria o ‘Macunaíma’ uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição folclórica do que um romance”.
Quem assim falou não foi Zaratustra, mas o nosso Zé Lins, que já mesmo por atirar-se de corpo e alma num mundo de papel e tinta, nunca deixou de criar personagens de carne e osso. Que o diga, entre os muitos que concebeu com engenho e arte, este fabuloso e verdadeiro Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-rabo.