Dois meninos de engenho, embora diferentes. Um revela as suas memórias de modo copioso, seja na ficção ( Menino de engenho , Doidinho ,...

José Lins do Rego e Augusto dos Anjos

literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Dois meninos de engenho, embora diferentes. Um revela as suas memórias de modo copioso, seja na ficção (Menino de engenho, Doidinho, Banguê), seja na autobiografia (Meus verdes anos), de que se alimenta a sua ficção. O outro mostra apenas alguns flashs da memória, transfigurados pela sua poesia estonteante e desconcertante (“Debaixo do Tamarindo”, “Vozes da Morte”, “As Cismas do Destino”, “Os Doentes”, “Gemidos de Arte”, a Trilogia dos sonetos ao Pai, “Noite de um Visionário”, “Insônia”, “Tristezas de um Quarto Minguante”, e o soneto “Ricordanza Della Mia Gioventú”, que reputamos ser a memória mais substancial).

A aproximação e o afastamento, no entanto, não se fazem apenas pela vida que viveram, mas também pelo que escreveram, ainda que um tenha sido romancista memorialista e o outro poeta de uma dimensão
literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
que vai para além da memória. Eles se juntam a partir de uma estrofe de “As Cismas do Destino” e de um trecho de Banguê, revelando um diálogo entre estes dois notáveis paraibanos, Augusto dos Anjos e José Lins do Rego.

Vamos, inicialmente, ao trecho de Banguê (21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, Parte II – Maria Alice – Capítulo VII, p. 119):

“Um boi urrava na beira do rio. E depois ouviam-se mais urros. Enchiam o areal branco de berros agoniados. Levantamo-nos para ver. Havia uma rês morta, estendida. Mordida de cobra, na certa. Precisava enterrar, senão o povo viria cortar-lhe as carnes para comer. Só se aproveitava o couro. Por um pedaço de carne verde aquela gente arriscava a vida. Era preciso tomar cuidado, enterrando o animal mordido, como se fazia com os bois de carbúnculo.”

O que nos chama a atenção, no trecho acima, é a referência ao carbúnculo matando os bois, assim como Augusto dos Anjos alude, em “As Cismas do Destino” (Parte II, estrofe 56, versos 221-224):

“Por que há de haver aqui tantos enterros? Lá no ‘Engenho’ também, a morte é ingrata... Há o malvado carbúnculo que mata A sociedade infante dos bezerros!”

literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
Nos amores escondidos com a prima da Paraíba, Maria Alice, Carlos de Melo vê voltar-lhe o ânimo de viver, após tantos dissabores. Aprende com ela a ter consciência da miséria e da exploração das pessoas de que se nutre o Santa Rosa, o engenho do avô, o coronel José Paulino. Ainda que as ideias de reforma e humanização não sigam adiante, tendo em vista o novo abandono a que Carlos de Melo será submetido, num processo recorrente em sua vida, que se alterna entre morte e abandono, rumando em direção ao aniquilamento, é notória, no texto de José Lins do Rego, a referência à miséria, que conduz o povo a arriscar a própria vida, apenas para ter o que comer. A quem passa fome não importa de onde vem a comida ou a sua qualidade. O estômago grita mais alto.

literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
O trecho de Banguê opõe dois tipos de morte do gado: a por picada de cobra, de que só se aproveita o couro, embora a carne, às vezes seja consumida, para apaziguar uma fome endêmica; a morte pelo envenenamento com o carbúnculo, de que nada se aproveita, tendo a rês de ser enterrada.

A miséria do engenho Santa Rosa não é apenas a da fome, provocada pela exploração do trabalho, num sistema fundiário e agrário atrasados, é a da ignorância que mantém o povo pobre nesta eterna condição e sujeição; é a da posse à força e, depois, a da prostituição, que submete as moças e as mulheres aos senhores, sem que haja qualquer consequência para eles, detentores da força de mando, emulando o que Dagoberto Marçal, em A bagaceira, afirma, ao expulsar um cabra do eito de seu engenho, sem deixar que leve nada do que plantou: “O que está na terra é da terra!” (34. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, Capítulo “Duas Almas num só Corpo”, p.13). E isto inclui, certamente, a honra das mulheres, violadas ao bel-prazer do senhor de engenho e de seus filhos.

A estrofe do Eu, citada acima, integrando a segunda parte de “As Cismas do Destino”, como já dissemos, refere-se ao momento em que o eu-lírico, na agudização do seu delírio, mostra a sua aflição, nas trevas que o envolvem, diante da percepção de que a evolução da espécie chegou ao humano, mas não ao humanismo. A pergunta com quem se inicia a estrofe já nos diz muito, na antecipação da miséria humana
literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
Por que há de haver aqui tantos enterros?

Se o ser humano evoluiu materialmente, espiritualmente encontra-se estagnado, tendo em vista a degradação em que mergulhou, entregue aos vícios, dentre eles o alcoolismo e a luxúria, contribuindo para a prostituição e para as mortes precoces e degradadas. Daí a motivação do eu-lírico de um desejo de a alma, separando-se do corpo, “Fazer da parte abstrata do Universo,” a sua “morada equilibrada e firme” (estrofe 61, versos 243-244).

A referência às mortes e à prostituição, resultados da degradação vivenciada pelo eu-lírico, leva a uma reflexão, sobre a vida no “Engenho” (a palavra já se encontra aspeada na estrofe), onde “A sociedade infante dos bezerros” é morta pelo “malvado carbúnculo”. A estrofe vem em meio a duas outras (55, versos 217-220, e 57, versos 225-228), que lhe dão um grande significado:

“Prostituição ou outro qualquer nome, Por tua causa, embora o homem te aceite, É que as mulheres ruins ficam sem leite E os meninos sem pai morrem de fome!” “Quantas moças que o túmulo reclama! E após a podridão de tantas moças, Os porcos espojando-se nas poças Da virgindade reduzida à lama!”

Embora o romance de José Lins nos revele a consciência da exploração e da miséria humana, o personagem-narrador, Carlos de Melo, se apresenta, a maior parte do tempo, como indiferente ou apenas tocado por ela,
literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
quando da presença de Maria Alice. Abúlico, ele mostra-se inerte para realizar alguma ação que possa mudar a situação, preocupando-se mais com as adversidades que o atingem do que com uma mudança substancial ou estrutural do meio em que vive. Com relação ao citado trecho de Menino de engenho, vemos que enterrar o gado, para evitar que a carne seja comida e ponha em risco a vida dos pobres que a ela recorrem, é uma solução paliativa, por sua urgência, sendo também mais fácil do que procurar um meio para que a miséria seja combatida ou erradicada. A presença de Carlos de Melo no ambiente não o torna alguém que se envolva diretamente com o sofrimento do povo. O seu sofrimento íntimo, preso a uma Maria Alice que já não existe, ou as divergências com José Marreira e os desastres que o põem sob o jugo da Usina São Félix, são suficientes para descentrá-lo do mundo.

Em Augusto dos Anjos, dá-se o contrário. O eu-lírico vê-se envolvido, na situação degradante, estando no “Engenho” ou não. A consciência do sofrimento e da dor dos degradados toca-o agudamente, por ele fazer parte inseparável dessa condição dolorosa. É sutil como o poeta associa o homem ao animal, na sua condição frágil de miserável, não lhe dando sequer voz. Se os bezerros fazem parte de uma “sociedade infante”, tomando o termo à letra, como os que não são capazes de falar, os homens são silenciados por uma condição miserável que lhes nega a fala, a maior das condições humanas, como se foram bichos. No engenho Santa Rosa, o gado ainda berra, no “Engenho” do eu-lírico, são infantes, assim como “os meninos sem pai” que “morrem de fome”
literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
– estes os verdadeiros infantes –, ou as moças que veem sua virgindade conspurcada e “reduzida à lama”. Compreende-se, portanto, a dor que o eu-lírico prova, dor recorrente em todo o Eu, na aflição de tentar se exprimir e nem sempre conseguir, associando-se à “alma dos animais”, “entre a ânsia de um vocábulo completo/E uma expressão que não chegou à língua!” (estrofe 39, versos 153-156).

O carbúnculo para Carlos de Melo é apenas um dos agentes da morte, sem muita complexidade ou muita reflexão porque isso acontece. Já para o eu-lírico, é impossível dissociar a ação letal do carbúnculo com a situação de degradação que envolve o fato. Daí a sua antropomorfização como “malvado carbúnculo”, como se um bacilo pudesse ser bom ou mau, não respondesse apenas ao que lhe dita a sua natureza bacteriológica. Bons ou maus são os homens, que agem mais danosamente que o carbúnculo, de modo consciente, para a satisfação de suas necessidades e de seus instintos. Do mesmo modo, a morte aparece com “ingrata” como se ela pudesse, em algum momento, ser uma persona grata. Parece-nos claro que a antropomorfização do carbúnculo ou da morte é uma maneira sutil de revelar a miséria da degradação humana. O homem mostra-se um grande mal que infecta como o carbúnculo e provoca mortes injustas. O destino de todos é a morte, mas a morte provocada pela pior das misérias, a prostituição, não pode ser vista como algo natural, principalmente quando atinge inocentes. Daí a homologia existente entre “a sociedade infante dos bezerros” e “os meninos sem pai” que “morrem de fome”.

literatura paraiba jose lins rego augusto anjos
Jean Bernard
O carbúnculo tem como ser detido. Além de anthrax ou antraz, ele é chamado de febre esplênica e carbúnculo hemático, por atacar o baço, que assume uma coloração negra, e o sangue do animal infectado. Na época de ambos os escritores, as vacinas já existiam, graças aos esforços, no século XIX, de Robert Koch e Louis Pasteur, decisivos para o combate à doença, junto ao gado mais sensível à contaminação – bovinos equinos e ovinos –, cuja infecção se dá através de água, pastos e ração de origem animal contaminadas*.

Já o ser humano precisa aprender o quanto ele é ruinoso para os outros a quem infecta com seus vícios, como se poderá ver na sequência do poema “As Cismas do Destino”, com a fala da consciência revelando-se ao eu-lírico, num diálogo claro com “Monólogo de uma Sombra”.

Eis aqui uma das maneiras de fazer o enfrentamento da poesia de Augusto dos Anjos: não basta ir ao dicionário e dizer o que é carbúnculo. É necessário que se dê, sobretudo ao léxico científico, um tratamento crítico, que vá além do seu significado denotativo, buscando a significação que ele tem no poema, decisiva para que possamos alcançar a sua significância.
* As informações sobre o carbúnculo foram retiradas do artigo científico “Carbúnculo hemático”, da autoria de Luana Maria Santos et alii, publicado na Revista científica eletrônica de medicina veterinária. Garça: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Garça FAMED/FAEF e Editora FAEF, Ano VI, nº 10, Janeiro de 2008 (ISSN: 1679-7353).

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também