"O canto de Gal é cura, mas também é curadoria de toda a expressão da música popular brasileira". Carlinhos Brown "S...

Gal Costa: Doce, Bárbara, Divina & Maravilhosa

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"O canto de Gal é cura, mas também é curadoria de toda a expressão da música popular brasileira".
Carlinhos Brown
"Sabe uma faca me rasgando?... Gal Costa sempre me trata com choque elétricos, eu chego pra ver ela e não vejo ela, e me arrebato por ela, e me arrebento por ela, me desarrumo por ela... cada vez acontece alguma coisa estranha, cada vez é como se a vida tivesse se partido, se começando, se acabando..."
Tom Zé


Uma boca vermelha, cabelos negros e encaracolados, corpo magro, pernas grossas, um sorriso largo, um violão e um sentar de pernas abertas, um carrossel, uma voz cristalina e agudos que só uma guitarra astuta, acompanha. Meu nome é Gal!

Perdemos essa moça, de nome Maria da Graça Costa Penna Burgos, que desde os anos 60 embala as nossas vidas com Baby, Folhetim, Divino, Maravilhoso, Chuva de Prata, Força Estranha, Dindi, Balancê, Festa no Interior, Coração Vagabundo, Vapor Barato, Sua Estupidez... e tantos outros hinos da minha/nossa juventude, com ela e tantas parcerias. Mil Perdões, cantado com Chico Buarque, é um arrepio. Uma dança sensual, um acasalamento. É inesquecível também, Gal cantando Cazuza, Brasil, mostra tua cara, abrindo os braços e deixando os seios nus, num ato de protesto, força e beleza. Acho lindo peito de fora:
Gal Costa no show "O Sorriso do Gato de Alice" ▪ 1994
sutiãs às chamas, topless, ou aquelas meninas ucranianas que saem às ruas de peito à mostra. Acho o peito da mulher uma beleza, uma manifestação do erotismo, da coragem, do alimento, do erótico, do sagrado e da paz. Gerald Thomas acertou! E Gal Costa mostrou os peitos e a cara de um país que ainda se mostra acanhado, nas questões progressistas do comportamento e do corpo feminino.

O primeiro show de Gal Costa a gente nunca esquece. Foi em São Paulo, o Gal Fa-tal. Flávio Tavares e vínhamos de Ribeirão Preto. Chegamos muito cedo ao Teatro. Éramos jovens e namorados. Sentamos na porta. Nisso, parou um táxi e desce uma moça magrinha, de jeans e camiseta, cabelo amarrado e óculos escuros redondos. Reconheci-a. Cheguei a me levantar para ir ao seu encontro e pedir um autógrafo, mas encabulei. Achei cafona. Achei invasivo. Ora essa! Arrependi-me. Depois vi essa mulher linda e graciosa no palco, a cantar todas aquelas músicas do disco (Fa-tal).

Em 57 anos de carreira, mais de 40 álbuns, e muitos prêmios, Gal deixa o seu nome escrito feito tatuagem na história da música brasileira. Mas não só. Ela também revolucionou os costumes, as posturas e o caminho da liberdade das cantoras e de nós mulheres. Como Gal foi livre! Vestia-se com aquelas roupas da Tropicália, que imitávamos. Bustiê, saias rodadas e floridas, flor no cabelo, batom carmim, e eu também ousava nesses figurinos. Apaixonei-me logo pelos Doces Bárbaros, que novamente, em anos difíceis
Gal Costa no show "Tropical" ▪ 1979
de 1978/79, cantei em lágrimas: o seu amor, ame-o ou deixe-o, livre para amar...; ou Esotérico, que até hoje choro quando ouço. Comprei o DVD e assisti muitas vezes dando aquelas carreirinhas junto com Bethânia e quase em transe, ô Xangô Xangô menino... Uma luz, um show, uma coreografia de amigos, um marco de música, arte e comportamento para os da minha geração.

Gal, discreta na vida íntima e amorosa. Sabíamos pouco dos seus amores. Mas em silêncio e quieta, ditou modas e viveu a sua sexualidade como bem quis. Amou, foi amada, fez sucesso cantando muito, foi mãe aos 60 e Gabriel teve essa doçura de mãe lhe cantando para ninar.

Antes da pandemia (2019), fui ver seu show no Teatro Pedra do Reino. Me larguei sozinha do Bessa. Uma viagem! Mas quando aquela mulher vestida de vermelho e pedrarias surgiu no palco, cantando todo um pot-pourri dos anos de seus maiores sucessos, aplaudi e agradeci. Aconteceu o mesmo com o show de Milton Nascimento, no qual, também sozinha, celebrei músicas inigualáveis. Fé cega, faca amolada.


Estarrecida como todo o país, recebi a notícia da partida de Gal. Chorei emocionada ao rever o programa de entrevista com Pedro Bial. Ela a falar da vida. Do milagre e da delícia da vida. Uma senhora, com o corpo longe daquelas pernas sensuais de tanga. Uma Senhora linda e sublime nos seus pijamas floridos e de olhos fundos, quem sabe mais tristes, mas a voz, ah! A voz... aquela doçura que, cantando com músicos jovens, brincava com os tons que quisesse. Aqueles que nos emocionavam ao cantar com Tom Jobim, Caetano ou Chico.


Quando meu pai morreu, eu morri junto. Quando Gal perdeu sua mãe, ela ficou muito triste. Falou que tinha dúvidas sobre o depois da morte e fez um comentário que nunca esqueci e que muito me ajudou no meu luto: que a memória dos que foram com certeza era uma energia viva, e essa energia ficava. Trouxe esse comentário para a vida. E, agora, vou prestar atenção à memória de Gal. Com Chuvas de Prata!

Viva Gal!


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