Quem poderia supor que página de jornal amassada formasse assunto para se utilizar numa crônica? Você afirmaria? Um coletor de papel, suado em suas dificuldades, roupa por lavar, barba grande; achou de mexer em uma lixeira quando se deparou com um saco plástico inchado de papelório. Para ele, como se fora ouro: assegurava seu sustento.
Pôs-se a retirar as folhas impressas. Antes de levar os papéis para vender na reciclagem, em casa, lia as notícias, crônicas, artigos, até uma vista pelos chamados “pequenos anúncios”.
Hoje, porém, sentado como está, se deparou com uma foto mastigada pela má acomodação no saquitel. A foto de alguém que conhecera, ainda menino de periferia, jogando bola de meia. Ela ia à escola, os livros acomodados na bolsa, sem se dar conta das meiguices de pré-adolescente que ele chutava a gol nas redes da alma.
Um placar imaginário que o menino de então jamais queria fosse empate sem tirar o pires do zero a zero. Os outros jogadores da pelada notavam o lateral desligado do perigo do gol, como se as pernas se houvessem congelado. Acordava, corria, chutava para que ganhassem a partida (a dele, íntima e sofrida, teria de ser um a uma).
Nos intervalos do jogo, ficava pensando nela: aquele porte suave. Será que obteria a vitória no campeonato amoroso e platônico com a vizinha cheia de beleza e orgulho? Mas, voltando à folha que exibia a foto colorida na coluna social. O coletor ficou suspenso: era ela.
Rejuvenescida, os mesmos olhos de tigresa, o perfil fiel, com alguns traços da menina que passava à escola. Leu a nota postada pelo editor:
“A médica, ao lado de amigas, no dia de seu natalício”.
Curioso, elevou a vista à data da publicação. Dobrou a página, colocou-a no bolso, prosseguiu arrastando o carro pesado de entulho. Soube do endereço do consultório, anotou o telefone. Ela o atendeu, ríspida e soberana:
“Cliente marca com a secretária”.
Desligou. Fez em pedacinhos o recorte da página, sacudiu no lixo. Saiu para a lida diária. Fim de jogo. 0 a 0 no marcador.