Pois é, existem diplomas e diplomas, medalhas e medalhas, títulos e títulos. As pessoas sabem disso, sem que ninguém precise explicar a diferença entre uns e outros. E isso é bom, pois prova que a inteligência pública para intuir certas verdades muitas vezes é subestimada pelos que se julgam mais espertos que os outros. Circulando por aí, sabemos, tem muito diploma, muita medalha e muito título cujo recebimento diminui mais que engrandece os seus agraciados. E também, ao contrário, muito diploma, muita medalha e muito título cujo não recebimento só aumenta a estatura dos não contemplados.
Nesse sentido, os exemplos são muitos. Começo com os perseguidos em nome da justiça, os punidos arbitrariamente pelas ditaduras, os derrotados que deveriam ter vencido, em quaisquer disputas. Nesses casos – e em outros semelhantes – a ironia da vida é que, com o passar do tempo, as vítimas – e a própria História – vão reconhecendo o valor simbólico e real dos malefícios sofridos, mais importantes, do ponto de vista ético, do que hipotéticas benesses que tivessem vindo a receber dos seus algozes. Quem se sentiria honrado em ser condecorado por um crápula? Só outro crápula, creio eu, já me desculpando perante eventuais exceções.
Vem-me ao pensamento a perda da presidência da República por José Américo, quando do golpe getulista que instaurou o Estado Novo, em 1937. O paraibano, candidato ao cargo máximo do país, era tido como o favorito nas eleições que se avizinhavam. E eis que Getúlio, sem querer deixar o poder, instala a ditadura, cancela o pleito e manda José Américo para o ostracismo. Pois bem. Essa presidência imerecidamente perdida só fez aumentar o brilho da biografia do “homem de Areia”, valendo mais que muita presidência conquistada por outros, sabe-se lá por que meios. Para mim, José Américo foi, de direito, presidente da República; apenas não tomou posse, como Tancredo, mas isso é um mero detalhe; na minha cabeça, no currículo do autor de A Bagaceira consta com todo destaque a chefia do executivo brasileiro. Ele e Epitácio foram os dois paraibanos que chegaram lá, quem quiser que discorde.
Continuando com Getúlio, que teve méritos, reconheça-se, há que se lembrar que, sem ser escritor, chegou à Academia Brasileira de Letras por conta de bajuladores e áulicos, enquanto autores da altura de Mário Quintana e Jorge de Lima, por exemplo, foram derrotados seguidas vezes na mesma confraria. Até o estatuto da Academia foi mudado para abrirem as portas ao poderoso não-escritor. Conquista ingloriosa de Getúlio. Infâmia eterna de seus oportunistas e imortais eleitores.
O grande Ulysses Guimarães, do alto de sua experiência, gostava de dizer que o bom não é ser, é ter sido. Em muitos casos, digo eu, modestamente, melhor é não ser e não ter sido.
Drummond, o imenso poeta, quando jovem, aos dezessete anos, foi expulso de um colégio de Nova Friburgo (RJ) sob a alegação de “insubordinação mental”. Veja só que galardão extraordinário, suficiente para envaidecer a inteligência de qualquer um. Muitos anos depois, o mineiro já consagrado como um dos maiores poetas do Brasil de todos os tempos, o mesmo colégio quis prestar-lhe uma homenagem. Drummond educadamente recusou. Considerava-se já devidamente homenageado com a antiga expulsão.
Cheguei até aqui para contar o caso do jornalista Elio Gaspari, nascido em Nápoles e nacionalmente conhecido, hoje prestigiado colunista do jornal carioca O Globo. Minha fonte é o também jornalista Cezar Motta. O fato é que Gaspari, então muito jovem, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, provavelmente empolgado pela “agitação política brasileira que marcou o período entre a renúncia de Jânio Quadros e a queda de João Goulart”. Matriculou-se no curso de História na Faculdade Nacional de Filosofia e, por atividades políticas, de lá foi expulso pelo então diretor Eremildo Viana, tido como um radical conservador. O tempo passou, a vida deu voltas e anos depois o então reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pedro Calmon, ofereceu ao ex-aluno um diploma honorário ou uma anistia. Gaspari recusou ambos, afirmando que “seu diploma era o comunicado de expulsão, emoldurado em sua casa”. O jornalista foi além: criou em suas colunas um personagem a que deu o nome de “Eremildo, o Idiota”, referência explícita e devastadora ao antigo algoz que ceifou arbitrariamente sua carreira de estudante. Riu melhor quem riu por último, como tantas vezes acontece – mas não sempre, não esqueçamos.
Vê-se, portanto, que há diplomas e diplomas, medalhas e medalhas e títulos e títulos. Cada qual escolha o seu, a sua. Essa liberdade de escolha é o fundamento da responsabilidade ética individual. Se somos livres para escolher, somos automaticamente responsáveis por nossas escolhas. Só não há responsabilidade quando não há liberdade, porque aí, lógico, você não escolheu por opção pessoal. A vida é assim – em tudo.
Sartre recusou o Nobel e Bob Dylan não foi receber o prêmio. São atitudes antes de tudo corajosas, sem entrar no mérito das mesmas. As reviravoltas da vida costumam transformar os perseguidos e condenados de ontem em heróis da atualidade. E vice-versa. Haja responsabilidade nas nossas costas. O futuro é sempre incerto. E muita vez é não sendo que se é mais.