Memória Para escrever o presente texto não precisei ir ao arquivo de jornais, livros e documentos. Bastou o arquivo da memória, onde...

A União: memória e eternidade

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Memória

Para escrever o presente texto não precisei ir ao arquivo de jornais, livros e documentos. Bastou o arquivo da memória, onde o prédio da velha A União ainda permanece aceso dentro da noite, com o ruído seco das suas linotipos e o som de uma sineta anunciando a chegada de provas para a revisão.

Eis uma imagem que perdura na minha lembrança. Demoliram o antigo prédio do tradicional jornal mas ele continua presente dentro de mim. E chegou a vez de evocar aquele poema de Manuel Bandeira – Última Canção do Beco – em que há uns versos assim:

Vão demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar Vai ficar na eternidade Com seus livros, com seus quadros, Intacto, suspenso no ar!
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A União
O mesmo eu digo do antigo prédio d’A União. Ele continua suspenso no ar, com seus personagens, suas rotativas, suas escadas e corredores.

O prédio foi tombado. Não em forma de registro no Patrimônio Histórico. Foi tombado para dar lugar ao atual edifício da Assembleia Legislativa, cuja modernidade destoa da historicidade daquele espaço. Expulsaram o jornal para bem longe do centro da cidade, onde sempre viveu, como se fosse uma coisa inútil, sem história, sem tradição, sem importância.


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A União
A Águia também voou

Houve tempo em que havia ali uma águia de bronze, símbolo da liberdade de pensamento, dos chamados voos da inteligência.

Não sei quem retirou aquele significativo marco histórico. Só sei que desapareceu. A história do jornal bem que poderia ser dividida em dois períodos: antes e depois da águia.


Meu primeiro emprego: revisor

Meu primeiro emprego público foi o de revisor d’A União, ao tempo em que era seu diretor o escritor João Lelis.

Jamais esquecerei aquela noite em que, levado pela mão paterna, subi a escadaria do jornal até o gabinete do diretor.

A cena me fez evocar O Atheneu, de Raul Pompéia, quando o pai do escritor, à porta do educandário onde o filho ficaria internado, diz: “vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”.

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A União
Estava eu diante de uma escola. Uma escola que haveria de me ensinar muita coisa na vida.

O diretor João Lelis nos recebeu com o melhor dos sorrisos. Leu a portaria de minha nomeação que meu pai lhe entregara, assinada pelo então secretário do Interior Samuel Duarte, e apontando para mim, falou:

⏤ Ele vai começar pela revisão. Depois (quem sabe) virá para a redação.


Revisão e café com pão

O relógio marcava 10 horas da noite quando meu pai desceu a escadaria do jornal, sem a minha companhia. Eu ficara no gabinete do diretor aguardando ordem. Pouco mais, o secretário José Cerqueira Rocha me conduzia até a sala da revisão, onde eu iria aprender o ofício de revisor de provas. Deram-me um texto impresso para ler, enquanto outro revisor ia anotando, à margem, os erros encontrados.
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Mediun
Com o tempo fui apreendendo os segredos do ofício.

O serviço era divertido, prolongava-se noite a dentro. Havia na mesa um dicionário para tirar as dúvidas. E quando dava meia noite, Leônidas nos trazia uma bandeja cheia de copos com café e pães com manteiga. Lá fora a praça dormia deserta. Um silêncio entrecortado pelo ruído seco das linotipos. Ao longe, avistava-se a sentinela de Palácio, imóvel como uma estátua. Na mesa, laudas e mais laudas de papel impresso, cheirando a tinta fresca, nos aguardavam. Os documentos subiam das oficinas para a revisão içados um cordão. Uma sineta dava o aviso para que as puxássemos. Os linotipistas mais competentes eram Assis, Cabral, Rocha, Castro e João. Excelentes profissionais.

As crônicas de Silvino

Chegavam-nos textos, cuja leitura constituía verdadeira tortura. Mas em compensação havia as crônicas de Silvino Lopes que eu aguardava com muita ansiedade. Crônicas a que não faltavam humor, inteligência e leveza. Todos os dias, os leitores d'A União eram brindados com a leitura suave e irônica do grande cronista e teatrólogo, cuja peça "Ladra" foi encenada no teatro Santa Rosa com muito sucesso.

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A União
Meu maior desejo era trabalhar na redação, onde Silvino pontificava. Como eu invejava seus comentaristas, noticiaristas, repórteres e cronistas!


Convite para a redação

Os trabalhos da revisão iam até de madrugada. Muitas vezes cheguei em casa com o sol já alto. Meu pai era quem me abria a porta. O resto da manhã era para dormir. O jornal ia assim modificando meus hábitos de vida.
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A União
Fui trocando o dia pela noite. Mas o tempo foi passando até que veio o convite que eu não esperava. Convite para trabalhar na sala de redação. Parece que estou vendo o secretário José Rocha, magro, espigado, chegando perto de mim e anunciando:

⏤ A partir de amanhã, você vem trabalhar com a gente, aqui na redação.

Notícia melhor eu não poderia esperar. Era o que eu mais, desejava. Só em ficar perto do famoso cronista Silvino Lopes... Na redação fui apresentado ao chefe da redação, jornalista Dulcídio Moreira, o cronista Wilson Madruga, o redator e repórter político Sandoval de Oliveira, o redator de esportes Aluísio Rodrigues, noticiaristas, Jader Lessa Feitosa e Milton Chaves.


Tradutor de telegramas

Na redação fiquei encarregado de traduzir telegramas, isto é, dar forma redacional à linguagem dos despachos telegráficos, que muitas vezes chegavam truncados, quase inteligíveis.

Estávamos, por sinal, em plena campanha eleitoral para a presidência da República, cujos candidatos eram o marechal Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes.

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CC0
Dutra, candidato do governo, era tido pelos seus adversários como homem de inteligência curta. Daí o farto anedotário a seu respeito. Contam, por exemplo, que no encontro que o marechal teve com o presidente Truman, este havia dito:

⏤ How do you do, Dutra?

Ao que retrucou Dutra, em cima da bucha:

⏤ How tru you tru, Truman?

Ora, acontece que, certa noite, me deram para traduzir um longo despacho telegráfico contendo o discurso de encerramento da campanha do marechal Eurico Gaspar Dutra.

Foi uma verdadeira batata quente em minhas mãos. O texto estava todo truncado. E meu grande receio era trair o pensamento do candidato do governo. João Lelis, o diretor, ficou até de madrugada aguardando a tradução completa do discurso, que tinha de sair na medida.


Virgem de Murillo

Onde o cronista Silvino Lopes estava, estavam as gargalhadas. É que ele, embora sisudo, não perdia oportunidade para uma observação irônica, uma comparação jocosa. Seu birô ficava defronte do meu.

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Bartolomé Esteban Murillo (1655)
Certa vez notei que o grupo que o cercava explodiu em risadas. E todos olhavam para mim. Claro que o fato me encabulou. Só depois é que soube que Silvino Lopes havia me comparado a uma das Virgens do grande pintor espanhol Murillo.

Ainda bem que o apelido não pegou.


Mestre e amigo

Com o tempo fui conhecendo Silvino Lopes mais de perto. Quanto ele me ensinou! Como se identificou comigo! E foi graças a ele que comecei a escrever no jornal. Lembro-me da minha primeira crônica, que saiu na secção de Registro Social e que se intitulava Rua Triste.

Referia-me à Rua Nova, hoje General Osório, onde passei grande parte de minha infância. Silvino Lopes tornou-se meu amigo e mestre.
Fonte: PB Criativa
Muitas vezes tomamos café juntos lá no Ponto de Cem Réis, lugar de sua preferência e fonte de muitos assuntos para a sua crônica diária.

Aliás – abrindo aqui um parêntese – A União teria prestado uma Grande homenagem àquele escritor se houvesse reunido em livro as suas crônicas, que tão bem retrataram o cotidiano da nossa cidade. Fica a sugestão ao diretor-presidente Itamar com vistas às comemorações do seu centenário d’A União, em 1993.

Voltando porém ao humor de Silvino Lopes, nunca mais me esqueci daquela noite em que ele e eu assistíamos ao filme À Noite Sonhamos no cinema Rex, sobre a vida de Chopin.

Na noite seguinte, Silvino tornou a ver o filme. E chegou à redação me dizendo: - “Acabo de assistir novamente À Noite Sonhamos. Hoje foi que Chopin tocou bem! .... Muito melhor do que ontem.... e sorriu.

Era assim o Silvino. Um homem cheio de muito humor e ternura humana.


Outras lembranças

Não gostaria de encerrar este texto, sem antes fazer referências a outros personagens que muito me impressionaram nesse contato inaugural com a vida de um jornal. Um deles foi Wilson Madruga, um autêntico diplomata. Elegante no vestir e no falar. Escrevia sueltos admiráveis. Editou por muito tempo uma revista que fez sucesso: Manaíra. Dulcídio Moreira um exemplo admirável de dedicação ao trabalho e competência. Era um homem polivalente. Tocava com maestria todos os instrumentos do ofício. E que dizer do Antônio Menino, o Chefe da Portaria. Sempre muito bem uniformizado: colete e gravata de lacinho. Tinha uma dignidade profissional a toda prova.

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Páginas da primeira edição do jornal A União, fundado no dia 2 de fevereiro de 1893 pelo então presidente da Província, Álvaro Machado ▪ Fonte: A União
A União completou [em 1993] seu primeiro centenário de existência. Um acontecimento cultural dos mais significativos da Paraíba. Um jornal, que, segundo José Américo de Almeida, foi nossa primeira escola de jornalismo. Constituiu, sem dúvida, um valioso patrimônio a preservar. Basta dizer que toda a nossa história está dormindo nas suas coleções.

É verdade que seu antigo prédio, na praça João Pessoa. Já não existe mais. Foi demolido. Mas — tal como o quarto do poeta — “ficará na eternidade, intacto, suspenso no ar”.


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  1. O saudoso e grande cronista, fez história.

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  2. Como ex-aluno dessa grande faculdade de vida, embora integrando uma turma que já não tinha muitos desses mestres citados pelo autor, em atividade, ainda me integro àqueles que lamentam a violência que o patrimônio histórico e sentimental de nossa Paraíba sofreu com a destruição do prédio icônico de A União.
    Na minha época, muitos desses personagens ainda estavam em seus corredores e muitos desses procedimentos ainda eram realidade.
    Ah!, tempos que se foram.

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  3. JOSE MARIO ESPINOLA21/11/22 00:18

    Uma crônica modelo Carlos Romero. Que texto delicioso, eivado de muita memória.
    Eu, pessoalmente, ainda acho que a destruição do antigo prédio, trocado pelo prédio modernoso da Assembléia, foi um crime cometido contra a arquitetura da Praça João Pessoa. Obra de quem não tem senso crítico, nem sensibilidade histórica.
    Fosse um governador mais sensível, jamais isso teria ter acontecido.
    Parabens, ALCR, por nos oferecer a oportunidade de ler as crônicas de Carlos Romero.

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  4. Que texto magnífico. É para ser publicado todos os anos na data de fundação do jornal. Parabens Germano pela republicação dessa peca histórica

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