Não estranhem. A história aconteceu, assim mesmo, no tempo em que os bichos falavam. Ninguém dava conta de Galileu, a onça. A indiazinha Tuiuiú não continha o choro. Seu Nenem Moreira, enquanto isso, desfilava por perto com ares de satisfação mal disfarçados. Observava tudo a sua volta para depois repassar ao compadre Tonico Macedo cada reação daquele grupo onde também estavam o macaco Alan, o coelho Geraldinho e o amigo Moacir. Este último vivia da profissão de carteiro apesar da condição e dos passos lentos de jabuti. Fora ele o portador da notícia do sumiço de Galileu.
O índio Tininim, recém-chegado àquela boca de mata, abateu-se com o desaparecimento do amigo. Mas logo recuperou o ânimo. Ninguém, como Galileu, sabia se livrar de encrenca. Certamente, estaria bem onde quer que estivesse. E tratou de animar o grupo.
Eis que surge o Saci Pererê com um embrulho de doces feitos a capricho por Mãe Docelina, a bem dizer sua própria mãe, posto que nascera de uma flor negra por ela plantada. Galileu ficou esquecido por um instante, mas só até o esvaziamento do pacote em coisa de um minuto. A Boneca de Pixe viera com o namorado no mesmo redemoinho escondida do pai, o fazendeiro Nereu da Silva Pinto, que não queria o namoro. Chegava para abraçar e consolar Tuiuiú.
Tininim foi quem primeiro se dispôs a procurar Galileu. E se embrenhou na mata, mas não sem antes recomendar à Boneca todos os cuidados possíveis com a namorada, a indiazinha sensível e chorosa. Ele conhecia aqueles córregos e trilhas como nenhum outro e, assim, não tinha dúvida de que logo encontraria a onça, bicho-homem com a disposição e a coragem dos guerreiros no que pese o artigo definido do gênero feminino conferido à espécie. Uma estupidez gramatical.
A ajuda do Saci em seu carro de vento seria de bom proveito, mas foram as orelhas de macaco o que permitiu a Alan a primeira escuta do grito: “Socorro, pessoal. Estou no fundo do buraco à direita de vocês”. Cipós lançados, puxões daqui e dali e Galileu veio à tona. Na verdade, esse camarada há muito sentia o cheiro e ouvia a conversa preocupada dos amigos de tão próximos que todos estavam da armadilha montada pelos dois compadres, onde caíra. “Por que não avisou há mais tempo?”, perguntou Saci entre aliviado e raivoso. Ficou sabendo que onça só pede socorro quando a fome aperta muito a barriga.
Nova armadilha foi por eles escavada a metros de distância da antiga e à espera dos dois caçadores então em busca do couro de Galileu. Não deu outra: Tonico Macedo e Seu Nenem, horas depois, bateriam com as bundas no fundo do outro buraco e ali ficariam até a retirada por alguma alma caridosa. E foi-se mais um dia na rotina bem movimentada dos maravilhosos e inesquecíveis moradores da Mata do Fundão.
É deles que lembro nestes 90 anos de vida de Ziraldo, o criador do “Pererê” e, depois, “Turma do Pererê”. É dos cartuns inicialmente publicados, em 1959, nas páginas de O CRUZEIRO e impressos, em seguida, naquilo que seria a primeira revista brasileira em quadrinhos totalmente colorida. É dos enredos nacionalíssimos, é da nossa identidade cultural e é da falência desse projeto encantador com suas 43 edições iniciais. As outras – umas dez, pela Editora Abril – não resistiriam, também, aos Anos de Chumbo e à concorrência brutal da poderosa indústria americana dos HQs com vendas de um dólar por cada jogo de fotolitos.
A festa dos 90 anos em família recentemente ocorrida na mineira Caratinga me traz à memória o Ziraldo irrequieto de tantas e tantas outras produções gráficas, o Ziraldo corajoso dos tempos de “O Pasquim”, o Ziraldo inconformado com a brutalidade e a estupidez que se instalavam (e ainda se instalam) no País. Sua bênção, Ziraldo.