Quero falar, mais uma vez, da língua como sistema, de modo a explicar que não há qualquer invencionice de José Lins do Rego, na utilização de severgonho que, no falar popular, se opõe a severgonha, como expressa o negro Chico Pereira, colocado no tronco a mando do Coronel José Paulino, avô de Carlinhos, acusado de ser “o autor do malfeito à mulata Maria Pia”. Alegando inocência – e depois se descobre que ele é inocente, pois o crime foi cometido por Juca, filho do Coronel –, Chico Pereira se refere a Maria Pia como “bicha severgonha” (op. cit., Capítulo XVIII, p. 82). O autor paraibano apenas observou o que está na “boca do povo, na língua errada do povo/Língua certa do povo”, como diria Manuel Bandeira, em “Evocação do Recife”, e decidiu utilizar o termo, condizente com uma obra, cujos capítulos se apresentam como quadros episódicos, sem que haja, necessariamente, uma continuidade cronológica, revelando um apelo mais do que explícito à oralidade. Do mesmo modo não há invencionice de Guimarães Rosa, quando Riobaldo se sai com um “pão ou pães, é questão de opiniães”.
As duas situações, uma em José Lins e a outra em Guimarães Rosa, revelam como o sistema da língua está sempre em expansão. A língua é um sistema que abriga os paradigmas. Nem tudo o que está lá será utilizado, mas lá se encontra, dando ao falante opções para a sua escolha. A linguagem, por sua vez, é a realização do sistema, expressa nos sintagmas que escolhemos para a nossa comunicação. Na realização, o uso, que manda na língua, vai compondo variações e estas vão se juntando ao sistema, expandindo-o, num processo de retroalimentação constante, ditado pelo uso.
O caso de severgonho/severgonha me lembra o que escrevi, recentemente, a partir de uma pergunta de meu neto Arthur, sobre madrasto, em oposição a madrasta. Como o sistema linguístico comporta a oposição de gênero, o usuário vai utilizando, muitas vezes inconscientemente, formas hipotéticas, que lá se encontram, tornando possível a sua realização. A oposição de gênero, arraigada na nossa mente, que torna o masculino não marcado e o feminino marcado, a exemplo de gato/gata, é que move a oposição severgonho/severgonha, ainda que a gramática normativa aponte aí um desacordo com a norma estabelecida, para não dizer que se trata de um erro. Algo na mente do falante-ouvinte nativo busca automaticamente o paradigma da oposição entre -o (vogal temática) e -a (desinência de gênero), que o autoriza a criar a forma opositiva.
Vejamos o caso de Guimarães Rosa – “Pão ou pães é questão de opiniães” (Grande sertão: veredas, 22ª edição, Nova Fronteira, 2019, p. 13). A nossa língua apresenta três formas possíveis para o nosso plural em -ão: mão/mãos; pão/pães; leão/leões. Nos três casos, é evidente a herança latina, não constituindo, como alguns acham, uma exceção. O acusativo plural (o acusativo é o caso lexicogênico) manus resulta em mãos, na língua portuguesa, com o “n”, marca da nasalização, subindo e se tornando um til. O mesmo acontece com as duas outras formas: panes > pães; leones > leões. A possibilidade de um plural em -ães, portanto, existe, encontra-se no sistema.
Quando digo que não há invencionice de José Lins ou de Guimarães é no sentido de que eles não criaram os termos do nada. Podemos até dizer que se torna uma marca estilística, mas o estilo foi beber na fonte inexaurível do sistema linguístico. É o que faz, em outro sentido, o poeta Augusto dos Anjos, no poema “Monólogo de uma Sombra” (estrofe 23), com relação ao plural tactis:
As alucinações tactis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!
Algumas edições corrigiram tactis para táteis ou tácteis, estropiando o verso de Augusto. A edição preparada por Antônio Houaiss (29ª, 1963) mantém tactis, como oxítona, para dar o acento da oitava sílaba do decassílabo. Mesmo que o decassílabo possa aí ser considerado heroico, com pausas na 4ª, 6ª e 10, Augusto emprega a forma tactis, para evitar dois acentos fortes seguidos (“alucinações tácteis”). Por outro lado, o poeta, pelo mesmo motivo de recusa a dois acentos fortes, pode ter querido construir um decassílabo sáfico, com pausas na 4ª, 8ª e 10ª sílabas – As/ a/lu/ci/na/ções/ tac/tis/ pu/lu/lam. De qualquer forma, sendo por uma questão de ajuste do ritmo do seu verso às necessidades inerentes ao decassílabo ou não, o fato é que Augusto dos Anjos não inventou a forma tactis. Ele foi buscá-la no grande paradigma do sistema linguístico que comporta variantes, em palavras como projétil/projetil e réptil/reptil, cujos plurais podem ser projéteis/projetis e répteis/reptis.
O que acontece, na realidade, é que o letrado se impõe a si próprio uma série de restrições ditadas pela gramática dos gramáticos; o iletrado ou pouco letrado guia-se pela gramática interna da língua, que é bem mais lógica do que a gramática normativa. Já o escritor – ah, esse severgonho do escritor! – se dá o sagrado direito de colocar a língua pelo avesso, por saber que as suas possibilidades são imensas e inexauríveis.