“Sai daí, menino severgonho. Vou dizer ao Coronel”. É o que se encontra como fechamento do capítulo XV de Menino de engenho , de José ...

Sai daí, menino severgonho!

“Sai daí, menino severgonho. Vou dizer ao Coronel”. É o que se encontra como fechamento do capítulo XV de Menino de engenho, de José Lins do Rego (Ficção completa, volume I, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976, p. 77), obra que chega este ano aos seus noventa anos. Assim mesmo, severgonho, sem nasalização na primeira sílaba, por ser mais fácil de prolatar, como grupo de força que a expressão sem-vergonha é, permitindo que se juntem as duas palavras, porque, na realidade, elas formam uma única estrutura de prolação. É o que, igualmente, acontece com porisso e apartir. Mas não é desses termos que eu quero falar.

Quero falar, mais uma vez, da língua como sistema, de modo a explicar que não há qualquer invencionice de José Lins do Rego, na utilização de severgonho que, no falar popular, se opõe a severgonha, como expressa o negro Chico Pereira, colocado no tronco a mando do Coronel José Paulino, avô de Carlinhos, acusado de ser “o autor do malfeito à mulata Maria Pia”. Alegando inocência – e depois se descobre que ele é inocente, pois o crime foi cometido por Juca, filho do Coronel –, Chico Pereira se refere a Maria Pia como “bicha severgonha” (op. cit., Capítulo XVIII, p. 82). O autor paraibano apenas observou o que está na “boca do povo, na língua errada do povo/Língua certa do povo”, como diria Manuel Bandeira, em “Evocação do Recife”, e decidiu utilizar o termo, condizente com uma obra, cujos capítulos se apresentam como quadros episódicos, sem que haja, necessariamente, uma continuidade cronológica, revelando um apelo mais do que explícito à oralidade. Do mesmo modo não há invencionice de Guimarães Rosa, quando Riobaldo se sai com um “pão ou pães, é questão de opiniães”.

As duas situações, uma em José Lins e a outra em Guimarães Rosa, revelam como o sistema da língua está sempre em expansão. A língua é um sistema que abriga os paradigmas. Nem tudo o que está lá será utilizado, mas lá se encontra, dando ao falante opções para a sua escolha. A linguagem, por sua vez, é a realização do sistema, expressa nos sintagmas que escolhemos para a nossa comunicação. Na realização, o uso, que manda na língua, vai compondo variações e estas vão se juntando ao sistema, expandindo-o, num processo de retroalimentação constante, ditado pelo uso.

O caso de severgonho/severgonha me lembra o que escrevi, recentemente, a partir de uma pergunta de meu neto Arthur, sobre madrasto, em oposição a madrasta. Como o sistema linguístico comporta a oposição de gênero, o usuário vai utilizando, muitas vezes inconscientemente, formas hipotéticas, que lá se encontram, tornando possível a sua realização. A oposição de gênero, arraigada na nossa mente, que torna o masculino não marcado e o feminino marcado, a exemplo de gato/gata, é que move a oposição severgonho/severgonha, ainda que a gramática normativa aponte aí um desacordo com a norma estabelecida, para não dizer que se trata de um erro. Algo na mente do falante-ouvinte nativo busca automaticamente o paradigma da oposição entre -o (vogal temática) e -a (desinência de gênero), que o autoriza a criar a forma opositiva.

Vejamos o caso de Guimarães Rosa – “Pão ou pães é questão de opiniães” (Grande sertão: veredas, 22ª edição, Nova Fronteira, 2019, p. 13). A nossa língua apresenta três formas possíveis para o nosso plural em -ão: mão/mãos; pão/pães; leão/leões. Nos três casos, é evidente a herança latina, não constituindo, como alguns acham, uma exceção. O acusativo plural (o acusativo é o caso lexicogênico) manus resulta em mãos, na língua portuguesa, com o “n”, marca da nasalização, subindo e se tornando um til. O mesmo acontece com as duas outras formas: panes > pães; leones > leões. A possibilidade de um plural em -ães, portanto, existe, encontra-se no sistema.

Quando digo que não há invencionice de José Lins ou de Guimarães é no sentido de que eles não criaram os termos do nada. Podemos até dizer que se torna uma marca estilística, mas o estilo foi beber na fonte inexaurível do sistema linguístico. É o que faz, em outro sentido, o poeta Augusto dos Anjos, no poema “Monólogo de uma Sombra” (estrofe 23), com relação ao plural tactis:

As alucinações tactis pululam. Sente que megatérios o estrangulam... A asa negra das moscas o horroriza; E autopsiando a amaríssima existência Encontra um cancro assíduo na consciência E três manchas de sangue na camisa!

Algumas edições corrigiram tactis para táteis ou tácteis, estropiando o verso de Augusto. A edição preparada por Antônio Houaiss (29ª, 1963) mantém tactis, como oxítona, para dar o acento da oitava sílaba do decassílabo. Mesmo que o decassílabo possa aí ser considerado heroico, com pausas na 4ª, 6ª e 10, Augusto emprega a forma tactis, para evitar dois acentos fortes seguidos (“alucinações tácteis”). Por outro lado, o poeta, pelo mesmo motivo de recusa a dois acentos fortes, pode ter querido construir um decassílabo sáfico, com pausas na 4ª, 8ª e 10ª sílabas – As/ a/lu/ci/na/ções/ tac/tis/ pu/lu/lam. De qualquer forma, sendo por uma questão de ajuste do ritmo do seu verso às necessidades inerentes ao decassílabo ou não, o fato é que Augusto dos Anjos não inventou a forma tactis. Ele foi buscá-la no grande paradigma do sistema linguístico que comporta variantes, em palavras como projétil/projetil e réptil/reptil, cujos plurais podem ser projéteis/projetis e répteis/reptis.

O que acontece, na realidade, é que o letrado se impõe a si próprio uma série de restrições ditadas pela gramática dos gramáticos; o iletrado ou pouco letrado guia-se pela gramática interna da língua, que é bem mais lógica do que a gramática normativa. Já o escritor – ah, esse severgonho do escritor! – se dá o sagrado direito de colocar a língua pelo avesso, por saber que as suas possibilidades são imensas e inexauríveis.

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