Meu grupo de leitura, Frederica , completa três anos este mês de outubro. A cada mês, um livro, e boas discussões pelos cafés da cidad...

“Os Anos” e o Boi Só

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Meu grupo de leitura, Frederica, completa três anos este mês de outubro. A cada mês, um livro, e boas discussões pelos cafés da cidade. O encontro de agosto foi na antiga fazenda Boi Só, hoje um condomínio e morada de uma das participantes que, gentilmente, nos convidou para um lanche na hora do lusco fusco.

O livro? Os Anos, da francesa, Annie Ernaux (São Paulo: Fósforo, 2021). Comecei a leitura meio travada pelo número de referências de uma França pós-guerra. Mas não só.
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Um caleidoscópio de acontecimentos que muitas vezes não conhecia ou me aborrecia em ler aquela enxurrada de um mundo longe de mim. E muita informação. Aos poucos, fui me conectando com as suas palavras e mergulhei. Os Anos, uma biografia impessoal; uma tentativa de apreender o século XX a partir dos anos 40, ano do nascimento da autora. Veio-me logo à cabeça o documentário: Nós que aqui estamos por vós esperamos (Direção: Marcelo Masagão, 1999), e fui devorando os assuntos que Annie traça, a partir da leitura de algumas fotografias. Uma estrutura narrativa que parte da descrição da foto, pessoal, diretamente para a leitura do mundo.

Tudo parte da primeira frase do livro: “Todas as imagens vão desaparecer”, ou ainda da epígrafe de Ortega & Gasset: “Temos apenas a nossa história e ela não é nossa.” Daí, Annie vai passeando pela memória e também pelo esquecimento. Pelo passado, presente e futuro, do tempo, do espaço local e universal; da importância de cada época; da história familiar e coletiva; das referências, da vida e do mundo; da vida real e imaginada; da vida das mulheres, do prazer, do trabalho, do tédio, das coisas silenciadas;
Annie Ernaux — vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2022
da revisitação dos costumes todos; do progresso; da globalização e modernização; do patriotismo e honra; da solidão; dos momentos de felicidade; da casa; da revolução sexual; das palavras e das coisas de Foucault e de tantas outras imagens e conteúdos caros a todos nós: Hair, a guerra do Vietnã, Che, Duerme Negritto, Novos Filósofos – Barthes, e Jacques Brel, Sartre, Senhor dos Anéis, Beatles, o jogo Banco Imobiliário, os campos de centeio, A Comilança, o consumo e as lojas Zara e H&M; o livro e todas as outras transformações pelas quais o mundo passou e vem passando – o computador e o novo estado de viver – dentro de casa, onde temos comida, filmes, companhias e todo e qualquer prazer. Vi todo o meu mundo vivido naquelas páginas.

Mas o que mais me chamou à atenção no livro, além da estrutura narrativa (de ler o mundo através de fotos antigas, foi uma outra estrutura, essa agora subjetiva, em que a autora fala da importância das sensações e dos gestos, e o corpo como um grande condutor de leitura. Já na primeira página ela faz a associação do tricô com a talidomida que as grávidas tomavam para o enjoo, enquanto o seu
Imani
bebê corria o risco de nascer sem braço. “Palavras que serviram para organizar o mundo, disparar o coração e umedecer o sexo.” As imagens de um instante (Virginia Woolf); a crônica de um tempo; um inconsciente coletivo (Jung). Esses gestos que descrevem um tempo: "... os modos de caminhar, se sentar, falar e rir, de comer... modos que passam de um corpo para o outro, dos lugares mais remotos... uma herança que era invisível nas fotos... um repertório de hábitos, um somatório de gestos moldados pela infância passada no campo, antecedidas por outras infâncias, indo assim até o esquecimento... perseguir as sensações que já estão aqui, ainda sem nome, como aquela que a levou a escrever.”

Nos nossos comentários infindáveis sobre o livro, e o fato de estarmos ao redor de uma mesa antiga e redonda, Freud foi aparecendo e quando demos por visto, estávamos a falar dos nossos problemas também: vida de solteira e seus preconceitos; a maternidade; a saída dos filhos – ninho vazio; a opressão sexual da geração dos mais velhos; dos gritos de liberdade de cada um; da repressão e violência pelas quais um dia sofremos; a vida familiar e suas prisões... enfim... uma sessão de psicoterapia através dos nossos anos, e não mais de Annie. Uma riqueza!

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Chegar na antiga Fazenda Boi Só foi a minha própria viagem, no meu tempo de infância e adolescência. O tempo dos meus pais amigos dos donos da casa – D. Lua e seu Adroaldo, dos filhos Adroaldo e Tico Gomes, meus amigos dos assustados, dos dias livres naquele lugar bucólico e nas noites de São João onde dançávamos quadrilha e nos perdíamos pelos ladrilhos hidráulicos lindos da casa grande. Casa essa que foi cenário de tantos filmes rodados por aqui. E também tema de uma exposição belíssima do artista plástico Flávio Tavares, que nos fazia transcender de tanta beleza de luz, objetos e história. O Boi Só fez parte da minha geração que morava no Centro, Bairro dos Estados e Tambaú. Amigos dos colégios das Lourdinas, das Neves, Pio X e Pio XII, sim, da fina flor da juventude dos anos 70. E ao entrar naquela casa, tão presente na minha vida, eu viajei no tempo e no espaço, na beleza do céu estrelado e do silêncio da noite. A noite dos meus anos.


Encontro do Grupo de leitura, Frederica, que completa três anos em outubro de 2022 / Antiga Fazenda Boi Só (PB)
Nota da autora: Escrevi este texto antes da Annie Ernaux ganhar o Nobel de Literatura

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