Parece título de fábula ou de conto de fada. Mas não é. Trata-se de história verídica contada, segundo Mirabeau Dias, por Genival Veloso, nosso mestre de Medicina Legal. O tal sapateiro chamava-se Isac, morava e trabalhava em Jaguaribe, meado do século passado, e era quem consertava os calçados da família de Genival, também moradora do bairro. Esse artesão, autêntico espécime do proletariado urbano, tinha uma característica inusitada: gostava de ler Dostoiévski, autor até hoje considerado não muito fácil e por isso restrito a paladares literários mais refinados. Veja só.
Isac também era assumidamente comunista, outra particularidade que o tornava de certo modo especial aos olhos de seus concidadãos jaguaribenses, e mantinha permanentemente em casa uma mala pronta, com roupas e artigos de higiene pessoal, para a eventualidade (não tão eventual assim) de ser visitado pelos homens da lei e convidado a passar, sem processo nem defesa, férias gratuitas - e sem prazo determinado - em alguma colônia penal. Essa mala pronta e em contínua prontidão tornou-se, no bairro, tão célebre quanto o seu dono, leitor de Dostoiévski. Além dessas excentricidades político-literárias, imagino que o nosso personagem tenha sido também um competente profissional da sola, do martelo e das brochas, como costumavam ser os trabalhadores manuais de outrora, muitos deles verdadeiros artistas em seu ofício.
Uma pergunta logo me veio ao pensamento ao tomar ciência dessa história: por que Dostoiévski? O grande romancista, apesar de ter abordado em alguns livros temas proletários e de ter conspirado contra o czar, não é propriamente considerado um autor revolucionário a ponto de ser recomendado aos comunistas de carteirinha. Pelo contrário. Exatamente por deter-se muito na psicologia dos personagens, ressaltando, portanto, a individualidade dos mesmos, não raro em detrimento do pano de fundo sócio-econômico, ou seja, dos aspectos coletivos da época, Dostoiévski, penso eu, não se enquadrava nos moldes do realismo soviético vigente ao tempo de Isac. Talvez, não duvido, fosse até mesmo proibido pelo partido, sempre rigoroso, sabemos, no controle absoluto da vida de seus filiados, inclusive, claro, de suas leituras.
Levanto uma hipótese: pode ser que Isac tenha adotado o autor de O Idiota não por sê-lo, em absoluto, mas simplesmente pela origem russa do escritor. É possível que confundindo, em seu entusiasmo sectário, Rússia e comunismo, possa ter pensado que ler Dostoiévski era adequado a um discípulo de Prestes. É só uma hipótese, claro, mas bem defensável, reconheço. Creio também que os livros do russo lidos por ele deviam provavelmente ser traduzidos do francês, já que à época, que eu saiba, ainda não existiam no Brasil traduções diretas do original. Mas isso é detalhe. O relevante é que, contra todas as expectativas, o sapateiro lia Dostoiévski – e isto era - e é -, de algum modo, excepcional. E já que estamos no reino do extraordinário, não duvido que Isac até lesse sem precisar de tradução.
Colho outra curiosidade nessa curiosa narrativa: o fato de Isac ser não apenas comunista mas também proletário. Essa coincidência não era – e continua não sendo - muito comum, pois, como bem sabe o leitor e Joãozinho Trinta já sabia, nem sempre andavam - e andam - juntas estas duas condições, comunista e proletário; ironia da vida e da política, com frequência até mesmo se excluem, para espanto dos estudiosos. Daí a peculiaridade de Isac, o sapateiro-leitor de Jaguaribe.
E por falar nisso, aqui me detenho nesse antigo bairro pessoense, verdadeiro microcosmo municipal, como tão bem mostrou o cineasta Mirabeau Dias em seu belo documentário Meu Jaguaribe, rico de imagens e personagens históricos daquela tradicional área da cidade. Um filme feito com rigor e arte, mas principalmente com amor, pois Mirabeau também foi jaguaribense, assim como Genival Veloso, João Batista de Brito, Martinho Campos, Carlos Pereira, Natércia Suassuna, Pedro Osmar, Bandeira Lins, Donatila Lemos, Toinho Alcântara e tantos e tantas mais, uma gente valorosa que saiu pelo mundo a conquistá-lo. Sem esquecermos, lógico, Isac e seus companheiros, heróis dostoiévskianos, certamente.
Não tenho dúvida de que deve ter sido uma figura esse Isac mítico de Jaguaribe. Sapateiro, leitor de Dostoiévski, comunista e sempre de mala pronta, à espera da polícia. Teria gostado de conhecê-lo. É muito possível que já não exista mais ninguém parecido com ele, seja onde for. Difícil encontrar em nossos dias alguém que reúna particularidades semelhantes às suas. Sapateiros, quase não há mais; comunistas verdadeiros, continuam cabendo num táxi, e leitores devotados do autor russo, esses sim é que são raros, num mundo dominado por computadores, celulares, games e orgulhosa ignorância.
Era uma vez um sapateiro que lia Dostoiévski.