Muito pequeno, eu não entendia por que minha mãe chorava enquanto uma Nossa Senhora emoldurada na parede da sala de visita me abria um sorriso claro, indiscutível.
Bastou eu contar: “A santa está sorrindo”. Pronto, Dona Vininha não conteve as lágrimas. Foram tantas que algumas respingavam em mim que ardia em febre, no sofá de palhinha. O colo materno me servia de travesseiro.
Fazia pouco tempo que o sol ali penetrava por brechas no telhado. Minha mãe, bem cedinho, retirou-me da cama, silenciosamente, de modo a não acordar os filhos mais novos. Acomodou-me no sofá sem cobertas, abriu as duas janelas principais, sentou e se fez de almofada para este seu primogênito, enquanto uma brisa leve e refrescante invadia a casa.
De olhar fixo numa réstia que escalava a parede em direção à tela retribuí com um sorriso leve a atenção que daquela imagem eu então recebia. “O que foi?”, perguntou-me, curiosa, minha mãe. E se pôs a chorar quando ouviu a resposta. O mais impressionante é que a cena não me assustava. Parecia-me natural, completamente normal, o cumprimento da moça retratada, ela também, com um menino gordinho e rosado ao colo.
Que dia! Aliás, que noite! Em plena madrugada, eu teria tomado um tiro do meu pai se, num escuro de breu, houvesse aberto a porta da casa em socorro a um amigo de quem supunha ouvir o chamado. Contaram-me isto muito depois. O barulho da chave ainda emperrada ao cabo de várias tentativas acordara os donos da casa. O velho Juca (novo, àquela época, naturalmente) catou a espingarda de dois canos e preparou a mira. Ladrão nenhum ali entraria.
Foi minha mãe que percebeu o filho em pé sobre uma cadeira a mexer na fechadura. Gritou horrorizada, ultrapassou o marido e abraçou-se comigo. “Claudinho está lá fora”, expliquei. A febre alta causava o delírio. Fui devolvido à cama, submetido a compressas frias e obrigado a beber um remédio gotejado num chá de alho com limão e mel. Cedo da manhã, eu respondia ao sorriso cálido, confortante, daquela moça feita de papel e tinta, mas tão bela, tão calma, tão terna.
Pois bem, de tempo em tempo, esta passagem da minha infância me vem à memória com espantosa nitidez. E, a cada lembrança percebo, de modo mais forte, que eu, sim, tanto quanto o menininho do quadro, tive o colo de uma santa.
Minha agonia com as febres altas do meu primeiro filho, seus delírios ocasionais e suas dores quase me deram um coração de mãe. Nascera com refluxos de urina para os dois rins. “Defeito de fabricação”, brincou o médico, amigo meu, a quem eu e minha mulher fizemos as primeiras consultas. Um “raio x” inicial e, depois, duas ultrassonografias confirmaram o problema: os ureteres, de tão espessos, conduziam de volta aos rins a urina ali produzida. Resultavam disso infecções urinárias repetidas e combatidas com cargas reforçadas de antibióticos até o êxito de duas cirurgias feitas em São Paulo, a primeira delas quando o pirralho tinha um ano e meio de vida.
Perdi a conta das vezes em que eu o pus no colo sem repetir o conforto e o socorro que um dia recebi daquelas duas mulheres: uma com seu riso doce, brando, protetor. Outra, com sua ternura, seus cuidados sem descanso e sem limites. Ambas me deram a impressão de que as mães cometem milagres. O fato é que nunca deixei de supor que saí vivo daquele sofá pela sorte dessas duas proteções. E nunca deixei de entender que a cura de um filho em muito depende do colo e das lágrimas daquelas de cujos ventres saíram. É por isso que, até agora, tento em vão alcançar o grau de aflição e desvelo das mães, no que pese a idade que hoje tem cada fruto da minha união com a moça saída do Rio Grande do Norte para meu encanto e meu sossego.
Parimos três rebentos. O mais velho, o dos ureteres espessos, já tem idade que passa dos 40 anos. Vem dele o único neto que possuímos. O do meio se aproxima disso enquanto o caçula ruma para os 35. Todos, sem exceção, com seus lugares cativos no peito deste pai absurdamente incapaz, todavia, de repetir o afago e os beijos da mãe desde que lhes chegaram à cara os primeiros pelos.
Assim ocorre, geralmente, entre pais e filhos homens. Mais dia menos dia, as demonstrações físicas de amor e carinho perdem os espaços do colo e a frequência dos beijos, por mais que invejemos as exceções. É coisa cultural. É algo advindo da ancestralidade. Foi assim com meu pai, com meu avô e com os avós destes.
Com as mães, não, posto que são feitas de outra substância. Não percebem que suas crias envelhecem por mais que engrossem a voz e branqueiem os cabelos. Colo de mãe, portanto, é coisa imune ao tempo. Eles sabem disso desde a mais tenra idade e, portanto, é para as mães que mais correm quando a vida, em qualquer época, lhes impõe dissabores. Sabem que elas têm o riso e as lágrimas que aplacam os sofrimentos. Os pais não têm isso e, dificilmente, terão.