Decidi começar uma vida de crimes. Já me vejo retratada por Gloria Perez em alguma novela futura, as redes sociais ardendo, psicólogos ...

O poeta e a criminosa

drummond poesia
Decidi começar uma vida de crimes. Já me vejo retratada por Gloria Perez em alguma novela futura, as redes sociais ardendo, psicólogos opinando, amigos envergonhados e William Bonner, com ar tão grave, a ler um editorial sobre o fim da inocência. Se apanhada, eu, criminosa não arrependida, direi que a culpa é dessa tal poesia que entra pelos olhos da gente, instala-se sem a menor cerimônia e nos faz amar os que estão mortos há tempos. Gente que se tornou estátua.

É que chutaram (já faz algum tempo) o rosto da estátua do Drummond. Os óculos voaram longe e caíram ao lado do banco. O homem de camisa listrada os recolheu à sacola e saiu andando. Crime menor, diriam as autoridades da cidade que se divide entre maravilhas e fuzis-ostentação.

Com os óculos de bronze - arrancados na décima-primeira vandalização da estátua do poeta - caíram também minhas barreiras morais. Passei meses analisando, mas agora está decidido. Começa hoje a minha carreira criminosa. Modalidade: sequestradora.

Tudo planejado. Tenho apenas duas mãos, um furgão alugado e o sentimento do mundo. Nada me deterá.

Estacionarei o furgão às 3 da manhã no calçadão de Copacabana e recolherei a escultura do poeta. Ela não vai resistir ao rapto, pois não sou serafim. Além de que, o poeta já andava cansado mesmo. Não aguentava mais aquela gente melosa, abraçando-lhe a figura o dia todo. Logo ele, mineirinho tímido, tendo sua versão estátua sendo babada, beijada e fotografada. Ora, me deixem sossegado - teria dito, se estátua não fosse. Aí já não tenho certeza. Era polido o poeta, dado a quietices.

Nos primeiros dias, a estátua do poeta vai querer escapar, disfarçada, para olhar o mar. Eu sei porque notei que lá no calçadão ele fica de costas para o oceano. Quem teve a ideia de colocar um poeta de costas para o grande azul? "É que ficava bem melhor pro pessoal que vai fazer foto comigo", ele me explicará, riso baixo, cara humilde. Pobrezinho, passou um tempo enorme apenas ouvindo as ondas quebrarem na praia, sem ver auroras ou poentes. Isso não se faz com um homem de letras, seus filisteus!

Sei que teremos uma ótima vida após o sequestro. Vamos ver o mar quando todos estiverem assistindo aos jogos da Copa do Mundo. Tomaremos água de coco, comeremos milho assado com café preto, no boteco falaremos mal dos políticos (de todos eles, sem exceção) e discutiremos literatura. Vamos ficar de mal e depois faremos as pazes. Eu lhe emprestarei meus óculos de ler letras miudinhas. Ele sorrirá das minhas tolices, Meu amor terá ciúmes e tentaremos aprender a sapatear como aqueles dançarinos de velhos musicais americanos. O poeta tem um quê de Fred Astaire (a magreza, acho). No fim do dia, assistiremos a uns filmes. Tentarei velhos faroestes, com Clint Eastwood ainda jovem. Ele vetará: não quer ser poeta de mundo caduco. Rirá. Riremos.

No meu covil de lobos mansos, ninguém chuta o rosto dos poetas

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