À historiadora Natércia Suassuna ( in memoriam ) As ideias e os livros são assim: mexem com as pessoas. Não tenho dúvidas de que e...

O jubileu de ouro do Jardim Glória e a joia rara de Speridião

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À historiadora Natércia Suassuna (in memoriam)

As ideias e os livros são assim: mexem com as pessoas. Não tenho dúvidas de que este é um dos seus papéis primordiais. E será sempre desta forma! Acredito que onde se semear uma ideia, onde surgir um livro, os indivíduos se inquietarão.

O Jubileu de Ouro do Jardim Glória, João Pessoa, 2006, Edições Sal e Terra, 650 p. Il., é um livro da Historiadora Natércia Suassuna (1941-2021) que, de maneira leve, despretensiosa e com vasta iconografia, cumpre este desiderato.

Imagino o quanto de ebulição causou a atitude de registrar em livro aspectos da memória de um micro espaço da cidade, o singular Conjunto Residencial de classe média onde a Historiadora morou, denominado Jardim Glória,
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empreendimento dos anos de 1950, incrustado nas primeiras ruas do Bairro do Jaguaribe, a passos da Avenida João Machado, em João Pessoa.

Imagino também quanta nostalgia despertou prepará-lo, ouvindo ou entrevistando moradores, ex-moradores e visitantes; identificando, reunindo e recolhendo lembranças, imagens, cenas, fatos e fotografias de época; percorrendo e descrevendo as ruas, a praça, e os pequenos jardins residenciais que se destacavam; recordando histórias e descrevendo usos e costumes de famílias e pessoas que ali moraram; revisitando quadrilhas juninas, assustados, passeios, brincadeiras, reuniões, reflexões, e outras manifestações e festejos, tudo misturado, tudo vindo à tona, até à composição final do livro de memória que nos legou.

Os assuntos abordados nesse robusto trabalho, extraídos do quotidiano da pequena comunidade em que o lugar pareceu se converter, são comuns e até banais, mas constituídos de intensa simplicidade, riqueza humana e de componentes sócio-espaciais que enriquecem a sociologia urbana e campos afins.

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Contudo, esse novo modo de habitar, certamente, transmutado de algum outro lugar pelo construtor, despertaria também sentimentos que se opunham.

De fora para dentro, uns havia que o enxergavam como um gueto, um espaço segregado, um território que afugentava, e até mesmo como um ambiente onde morava gente que talvez se considerasse mais importante do que a vizinhança. De dentro para fora, outros o tinham como um lugar de tranquilidade, seguro, bom para morar, um paraíso perdido, e quem sabe, algo até como o seu próprio Shangri-Lá.

Por vezes, o coração do lugar, a Pracinha, como os moradores a denominavam, se transformava em suposta ágora, em espaço de reuniões onde os moradores podiam reverberar preocupações,
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emoções, anseios, ou simplesmente fazer comemorações.

Certa tarde de domingo, com a curiosidade de ver como estava esse pitoresco recanto da cidade, revisitei ao Jardim Glória, construído na década de 1950, e que cinquenta anos depois estava sendo abordado em livro por uma ex-moradora do lugar, a autora do livro em questão.

Visitei-o em companhia do pesquisador Humberto Fonseca, um flaneur que por motivações afetivas e literárias foi visitante do lugar por inúmeras vezes. Pudemos, a quatro olhos, mesmo que rapidamente, recortar a cidade de outrora, ouvir relatos, sentir como esse espaço que ainda desperta curiosidades está inserido, se integra ou se segrega, positiva ou negativamente, no urbano ao seu redor e na cidade em geral.

Pudemos também obter alguns portraits indicativos da evolução da cidade que têm se refletido no Bairro do Jaguaribe e observar as mudanças mais visíveis ali ocorridas; perscrutar rumos, conquistas e avanços e colher elementos comprovadores de que a despeito de sua indisfarçável afeição ao Bairro, a juventude que vivia no Jaguaribe, nos anos 50 e 60 do século passado, se preparou para um futuro fora dele.

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Observei que o tempo e o desenvolvimento que vêm transformando João Pessoa, de modo acelerado, conferindo-lhe nova fisionomia urbana, em quase nada arranharam o aconchegante Jardim Glória e arredores contíguos. Mas, a revolução imobiliária que, vorazmente, da praia para o centro, está engolindo as áreas mais antigas da cidade, não poupará nem mesmo Bairros sólidos como o Jaguaribe.

Observe-se que a cidade que lentamente veio do centro para a praia, de forma horizontalizada, agora marcha em sentido contrário e voraz, da praia para o centro, devorando o casario, expressando-se através de uma verticalização sem precedentes que já está dando sinais de que o simpático Jaguaribe que abriga o Jardim Glória, mais dias, menos dias, por certo, poderá também ser tragado.

O Jardim Glória, de minúsculo território semicircular, de três entradas, e no qual todas as casas têm a frente voltada para uma praça interna, formando pequena cour, está encravado entre as Ruas Alberto de Brito e Américo Falcão, tendo ao sul a Rua Monsenhor Almeida, no comecinho do bairro do Jaguaribe, logo após cruzar-se a Avenida João Machado, nas imediações do Fórum Criminal da capital Ministro Oswaldo Trigueiro.

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Da visão do lugar, da leitura do livro e dos contatos com pessoas a ele vinculadas, pude concluir que deve ter sido muito agradável morar ali, onde famílias vindas do interior do Estado ou de cidades e fazendas periféricas à capital, notadamente, e não o luxuoso de casas, muros e fachadas é que faziam a glória do Jardim e o transformavam em joia rara, tão bem interpretada no livro como 50 anos de amizade.

Quando cheguei a João Pessoa, vindo de Fortaleza (1975), depois de uma estada de quatro anos em Cajazeiras, escolhi morar no Conjunto Residencial João Goulart, no Bairro dos Expedicionários, este também uma das várias obras do Engenheiro-Construtor Speridião Gabínio de Carvalho Júnior, realizador do Jardim Glória e do Jardim Miramar, dentre outras que produziram impacto na ocupação territorial da cidade.

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Não que a vida no João Goulart não tivesse algum charme! Tinha sim, notadamente, quando o cenário era a paisagem de bosque formada por grandes quintais, onde pomares verdejantes e profundos, cumpriam o papel de atrair vizinhos e amigos, até de outros bairros, para o lazer familiar dos fins de semana, ou serviam de espaço para a ocupação em atividades manuais.

Esses quintais se caracterizavam como típicas cours, onipresentes na estética da moradia urbana europeia, até mesmo em grandes cidades como Londres e Paris, bem conhecidas do Dr. Speridião Gabínio que fez uma parte da sua formação em Engenharia na Inglaterra.

A cour se caracterizava como um espaço ampliado da casa para onde algumas atividades eram deslocadas. No caso do Jardim Glória, a cour era também esse espaço ampliado da casa, coletivizado, utilizado primordialmente para eventos de
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caráter social do Residencial, fosse uma comemoração de aniversário, um festejo folclórico, uma reunião de interesse comum.

Assim, pelo que pude observar em relação a esse simbólico empreendimento imobiliário, no Jardim Glória de outrora, segundo moradores, o que mais importava eram as relações entre as pessoas, os valores de vizinhança, o conforto e a segurança em ali morar, o carinho de pai a homenagear a filha de nome Glória, do que propriamente selos e traços de inovação urbana, como até seria razoável se esperar de um investidor reconhecido, de homem de grandes conhecimentos e vivência em projetos avançados de moradia, ou mesmo do seu talento de empreendedor, homem de negócios, paraibano residente no Rio de Janeiro, que depois de anos vem à sua terra, empreende por um tempo curto e por razões não conhecidas, logo retorna à capital do país.

A lamentar, o fato de que nem os guardiões que emprestam seus nomes às poucas ruas do Jardim Glória, nem os seus moradores, se tenham erguido em defesa da causa, de modo a impedir a reprovável mudança do nome da Praça que enfeita que embelezava seu jardim interno, hoje completamente desfigurado. A cidade estava crescendo, a notoriedade do papa João XXIII era grande, a homenagem a ele poderia ter sido prestada em outro lugar.

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Certamente, algum capricho prevaleceu e o logradouro, infelizmente, perdeu sua denominação de origem. Pelas muitas histórias que se ouve de quem viveu neste Residencial, ou o conheceu de perto, ao vê-lo hoje, o sentimento que se tem é o de que a joia rara de Speridião foi adulterada e a memória do lugar desrespeitada.

Assim, a partir de diferentes contextos abordados e de registros da Historiadora Natércia Suassuna nesse livro, é dado perceber-se que, independentemente do tempo, um imaginário fértil, pitoresco, resistente a intempéries, formou uma memória em torno do festejado ente urbano Jardim Glória, onde não só humanos, mas também os próprios animais que por ali circulavam, como uma Égua de carroceiro, o cachorro Duque, a caminhoneta Fofoca ou o carrinho de sorvetes Xaxá, tornam-se personagens a contar e a enriquecer a memória do lugar.

Assim, caríssima confreira no IHGP, onde você estiver só me cabe agradecer e parabenizá-la pelo qualificado legado. Muito obrigado pelo exemplar que me enviou.

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