Confesso que não alcançava o sentido dos versos do hino dedicado à Senhora de Fátima: “A treze de maio, na Cova da Iria”... Perguntava ...

Hinos, santos e catecismo

Confesso que não alcançava o sentido dos versos do hino dedicado à Senhora de Fátima: “A treze de maio, na Cova da Iria”... Perguntava aos meus pequenos botões, naqueles idos do catecismo ministrado pela professora Dapaz, braço direito do Padre, quem teria sido a pobre Iria, do que teria morrido e o que a santa fora fazer em sua cova. Simplesmente aparecer no Céu? Melhor faria se cuidasse de devolvê-la à família e aos amigos, entre eles, certamente, os três pastorezinhos.

A cautela me impedia a interpelação à catequista com quem menino nenhum queria encrenca. Receava contrariá-la no seu grande momento: o da exaltação, de olhos cerrados, ao milagre da aparição daquela Senhora mais brilhante do que o Sol. Aliás, os pequenos Francisco, Lúcia e Jacinta por pouco não cegaram.

Passou-se um bom tempo até eu entender que, ao invés de uma pessoa de carne e osso, Iria era um lugar, ficava em Portugal e, a tal cova, uma fenda, uma abertura. Nas roças da minha infância o termo também era aplicado aos buraquinhos na terra para o plantio das sementes de milho, feijão e fava.

Iria situa-se na freguesia de Fátima onde quase todas as ruas têm nomes de santo. Quando li sobre isso não deixei de me perguntar se a pequena, sedenta e sofrida Paraíba não invocaria em maior amplitude os vultos e símbolos sagrados. Por aqui, santos e santas às dezenas dão seus nomes não a ruas, mas a muitas cidades. A lista inclui Santa Cecília, Santa Helena, Santa Inês, Santa Luzia, Santa Rita, Santa Terezinha, além de versões possíveis de Santa Ana como nos fazem crer Santana dos Garrotes e Santana de Mangueira. De quebra, ainda há uma Santa Cruz, uma Cruz do Espírito Santo e um Bonito de Santa Fé.

Três dos nossos municípios recebem o nome de João, o santo cuja festa ocorre em todo o Brasil, no mês de junho, com fogueiras, foguetório e muita comida. Bebida, também, por que não? Os Joões são os do Cariri, do Rio do Peixe e do Tigre. Desse grupo junino, Pedro (ausente da relação) é celebrado no 29º dia e, assim, fica muito aquém de José, festejado, aliás, em março. Em solo paraibano, há São José da Lagoa Tapada, São José de Caiana, São José de Espinharas, São José de Piranhas, São José do Bonfim, São José do Brejo do Cruz e São José dos Cordeiros.

E ainda não é tudo. Que o digam, então, Bom Jesus, Aparecida (quem, tão digna do topônimo, por ali apareceu?), Imaculada, São Bento e São Bentinho (não é de supor que sejam pai e filho), São Domingos e São Domingos do Cariri (assim, lá e lô), Santo André, São Mamede, São Miguel de Taipu, São Sebastião da Lagoa de Roça e São Vicente do Seridó.

Terminou? Claro que não, pois ainda faltam os santos mencionados, alguns deles, em Barras, Riachões, Lagoas, Brejos e Salgados. São os casos da Barra de Santa Rosa, Barra de Santana, Barra de São Miguel, Brejo dos Santos, Salgado de São Félix, Riachão de Santo Antonio, São Sebastião de Lagoa de Roça, São Sebastião do Umbuzeiro (a árvore do umbu?) e São Vicente do Seridó. Dali mesmo, da região de transição entre o campo e a caatinga.

Mas, voltemos ao Catecismo. Atinei, com o passar dos anos, que o hino à Senhora de Fátima – cujo refrão chegava à casa da família Costa, evangélica – retratava um dos fenômenos mais cultuados pela fé católica. Dos Costa, gente de bem, diga-se que nunca promoveram um instante sequer de contrariedade aos credos da minha mãe nem da mãe desta. Embora não fossem carolas e não vivessem aos pés do altar, que ninguém diante delas duvidasse da santidade de Maria. Em contrapartida, aquelas duas até arriscavam alguma entoação do “Vencendo vem Jesus”, entreouvido, parede e meia, da voz doce de Nina Costa, uma das muitas filhas do velho Severino: “Glória, Glória, Aleluia. Vencendo vem Jesus”.

Quando as primeiras leituras das coisas do mundo me conduziram aos conflitos sangrentos da Irlanda fiz da divisão do povo irlandês o resultado da intolerância de dois bandos de estúpidos. Afinal, se a minha família e a família vizinha tanto se gostavam, apesar de professarem crenças diferentes, por que isso não poderia acontecer no resto do planeta? Mal sabia eu que a briga, lá fora, envolvia a Rainha da Inglaterra e a submissão à coroa. Era, antes de tudo, briga por independência.

A bem da verdade, devo contar que nem tudo era totalmente pacífico no nosso terreiro. Certa vez, por atraso besta no pagamento, a vice-prefeita mandou cortar a luz da Igreja Batista, em dia de festa. Deve assim ter feito por raiva pessoal de alguém, posto que nunca foi uma dessas católicas fervorosas. Não me recordo de tê-la visto, uma vez sequer, a receber a hóstia cujas sobras eu e o amigo Paulo comíamos nos preparos da dona Auta. Antes de seguirem para a Igreja e as bênçãos de Padre Gomes podíamos degustá-las, sim. Deliciosas, desmanchavam-se na boca.

No jejum da Primeira Comunhão, finda a missa e morto de fome, avancei nos bolos e quitutes da Casa Paroquial sem me aperceber da temperatura do café, fervente. Cuspi tudo de volta ao prato e atribuí ao constrangimento algum castigo divino. Teria porventura esquecido de contar algum pecado ao vigário? Vá lá saber...

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também