No Canto IX de Os Lusíadas, em que se inicia o célebre episódio da Ilha dos Amores, momento e descanso merecido de Vasco da Gama e seus navegantes, em ilha regida por Vênus, cujo objetivo era “dar-lhe nos mares tristes alegria” (estrofe 18, verso 8), após a grande empreitada por “mares nunca de antes navegados” (Canto I, estrofe 1, verso 3), o poeta Luís Vaz de Camões refere-se ao Amor, com a propriedade dos amantes experimentados (estrofe 83, versos 7-8):
“Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue- quem não pode experimentá-lo.”
Camões veio-me à mente ao ler os sonetos de Astenio Cesar Fernandes, médico oftalmologista de profissão, confrade da Academia Paraibana de Letras, que não desgarra do seu amor às letras, revelado também em Avirati, recentemente publicado e para o qual eu escrevi uma das orelhas (1ª ed. João Pessoa: Ideia, 2022). Não foi à toa que o eco camoniano reverberou em meus ouvidos, pois o Soneto 2 tem como título “Amor”. Amor como caminho difícil de se trilhar, que não admite em seus círculos quem não se dispuser a percorrê-lo, pois “não se aplica a quem jamais amou”.
Astenio Cesar Fernandes se lança, neste seu segundo livro, no terreno arriscado do soneto. Mas Astenio é experimentado, não patina ou desliza. Mantém-se firme no fundo e na forma. A forma do seu decassílabo ritmado lembra em alguns momentos o ritmo do martelo agalopado da cantoria de viola, com pausas bem marcadas na 3ª, 6ª e 10ª sílabas. Em outros momentos, Astenio utiliza-se da flexibilidade do decassílabo clássico, como o heroico, sem nunca abrir mão da cadência do seu verso.
No que diz respeito à essência, Astenio Cesar Fernandes, com a acuidade inerente a sua especialidade de oftalmologista, constrói com precisão o tema do amor, em seu Avirati, cujo sentido, em sânscrito, é o de sensualidade, segundo ele mesmo nos revela. O Amor, um dos temas caros da literatura, concorrendo de igual para igual com o tema da Morte, percorre os seus sonetos. O Amor e os seus efeitos colaterais prelibados ou já provados – saudade, ilusão, desilusão, esperança, dor, desalento, satisfação, gozo, medo, sonho... O lirismo de que se veste cada soneto tem suas nuanças, indo do amoroso ao erótico, trata-se, contudo, de um erotismo que se poderia dizer de uma sensualidade tímida e terna, sem os arroubos que se poderiam encontrar nesta seara lírica. Sensualidade própria dos que sabem quantas aflições terão de passar aqueles que anseiam por um momento intenso com o ser amado.
Se “o amor é caminho em que se fica” (Soneto 2, Amor), e em que, às vezes, nos perdemos, é porque sabemos que “o amor nos mata de estesia” (Soneto 12, Contentamento). Eis o que é essencial: o Amor pode nos trazer mil agruras, mas a sua força renovadora, como diz Astenio, nos traz a certeza de que “a vida se vestiu de sol nascente” (Soneto 32, Azos).
O soneto 21, Felicidade, de novo nos aproxima de Camões, de novo nos remete à Ilha dos Amores, fazendo a ponte entre Astenio Cesar Fernandes e o poeta de Os Lusíadas, no tratamento dado às dificuldades impostas pelo Amor, não importando que dele se ocupe na lírica ou na épica. Nestas dificuldades e aflições, como tão bem expôs Astenio Cesar Fernandes, o amor sempre nos foge e sempre se torna difícil a sua consecução. Vejamos o soneto:
Por que foges assim, felicidade,
De um ser que a ti persegue tanto?
Já nem sei se existes de verdade,
Tu habitas o reino do encanto.
Por que crês em fugir, sem ser maldade,
Ocultar-se debaixo de um manto?
Por que foges, então felicidade?
Revela-te em mim! Não me espanto.
Porque vives assim tão escondida,
Haverá de ser sempre perseguida,
Destinada também à solidão.
Não sei se és pouco compreendida,
Mas, fugindo tanto, a minha vida
É um correr atrás de ti, em vão!
Assim é que, ao tratar do amor de Lionardo com a nereida Efire, que busca dele fugir, Camões é taxativo ao dizer, valendo-se de um verso de Petrarca (Soneto 43), que “Tra la spica e la man qual muro he messo” (estrofe 78, verso 8, assim mesmo em italiano): entre a espiga e a mão um muro pôs-se.
Se o amor incendeia Apolo e faz Dafne dele fugir, negando-se a um dos deuses mais belos e completos do Olimpo, deixando, como diria Camões, o deus arqueiro “docemente perdido” (Soneto 162), o que não faria conosco, míseros mortais, sempre a mendigar alguma migalha? Responde Astenio que, quando Amor nos falta, ele nos faz “menino triste, sem brinquedo” (Soneto 4, Mulher).