Diga-me com quem andas que eu te direi quem és. Não tenho medo de dizer com quem caminho. De uns tempos para cá, tenho convivido com gente que nem sabe que existo até porque existiam bem antes de mim. Tem sido de meu agrado estudar a vida dos estoicos. Coragem, temperança, justiça e sabedoria e eis as virtudes que aprendo a cultivar no cotidiano e deixo bilhetes a esse respeito para quem está ao meu redor.
Mais do que referência para meus escritos, os estoicos me permitem uma relação diferenciada com a escrita. Quem você é, qual é a sua relação com a escrita e por que você escreve passam a ter outra dimensão. Parece algo menos inocente se um propósito bem definido prepara-te o punho. Então, vamos ao que interessa.
Exercer a escrita exige coragem para olhar-se no espelho e isso torna-se uma constante. Sabe-se o quanto um espelho pode ser cruel. O que será feito na escrita após a autocontemplação diante do espelho pode ser definitivo para a construção de uma autoimagem menos fragmentada e mais resignada. Considero esta uma das etapas do processo de escrita. Talvez seja mais difícil do que as outras.
Extrair de si mesmo tudo quanto possível me parece um exercício interessante. Muitos pensarão desta forma. Para outros, talvez seja motivo de vergonha, mas tudo a seu tempo. Àqueles que ainda consideram improvável encarar um espelho, andem com um caderno e caneta para ajudar-lhes a dizer quem são, a princípio para vocês mesmos, e depois para a multidão.
Cada um tem seus motivos para escrever. Eu tenho os meus. Um deles é o esquecimento de quase tudo que é ruim. Digo quase tudo porque aproveito o lado bom daquilo que não presta e transformo em literatura. Descobri como pode ser interessante este exercício de pensamento.
Percebo o quanto de eufemismos há em um desabono e preciso contar a todo mundo. Não sou capaz de transformar soda cáustica em água, mas consigo tocar o dedo na ferida com delicadeza quando as soltas feras dançam à minha frente. Cheguei a pensar que o gosto pela escrita tem origem na solidão. Seria coisa de quem não tem com quem conversar? Certamente não. Escrever me traz equilíbrio. Quero reeducar a língua, mas falta-me temperança. É melhor continuar a ler Sêneca.
Sinto que ainda não escrevi o suficiente e, ao mesmo tempo, quero ser justa com outros as outras formas de arte que aprecio. Gosto de desenhos. Aprecio as veias expostas à tinta preta. As veias de hoje não são as mesmas de quando a gente nasce. Pequenos, talvez não consigamos desenhar de modo definido onde o sangue corre. Grandes, talvez não possamos dar conta dos discursos que cabem nas mãos prensadas no papel.
Quero inventar em detalhes as minhas mãos, antes que se tornem memórias póstumas. Desenhar as próprias mãos pode ser algo banal. Só que não. Confesso que serei ingrata. Vou usar minhas mãos para desenhar meu principal instrumento de trabalho. Seria um metadesenho? Isso tornou-se minha obsessão agora: pensar os contornos de minhas mãos.
O fio de um emaranhado pode se tornar uma dor de cabeça crônica. Ao pensar nisto, resolvi enfrentá-lo. Um único fio pode conter a saída para a solução de uma raiva que não sei de onde vem (ou finjo não saber). Preciso ter clareza disso para pronunciar a frase “vida que segue”. A grosso modo, aprender a perdoar.
Enquanto algo fica mal resolvido, o emaranhado ali permanece, no desenho das mãos, e pode travar os caminhos que pretendo encontrar abertos. Tais caminhos gosto de deixar em branco, uma vez que ainda não foram percorridos. Meus mundos internos ainda têm muito chão para pisar.
Este é o início do caminho para se alcançar a tão almejada sabedoria. Alcançada uma das mais importantes virtudes, a sabedoria, não mais precisarei inventar com detalhes coisas que nunca fiz, ver pessoas que nunca conheci ou resolver conflitos que não existiram. Assumirei plenamente o último estágio da não ficção em minha narrativa.
Estarei livre de catar os fragmentos vividos em sonho e que já nem sei se ainda me lembro. Inventar sonhos é uma das coisas mais bonitas que um escritor pode fazer. Que outros escritores não tenham a mesma experiência que eu. Seria o fim da literatura.