E eis que Virginius completaria cem anos se vivo fosse nesse 19 de outubro de 2022. Levando a vida boêmia que levou, dificilme...

Cem anos de Virginius da Gama e Melo

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E eis que Virginius completaria cem anos se vivo fosse nesse 19 de outubro de 2022. Levando a vida boêmia que levou, dificilmente atingiria o centenário, mas a vida tem seus mistérios e o menestrel poderia perfeitamente ainda estar entre nós, inclusive com o pleno uso das faculdades mentais, como alguns idosos privilegiados que estão por aí. Seria curioso ouvirmos o que ele estaria achando dessa nossa contemporaneidade, tão diferente do seu tempo, a despeito de ter sido ontem que ele pontificou em nosso meio. Esse centenário terá certamente muitas comemorações; pelo menos, é o que espero, sempre receoso que sou da amnésia paraibana. Para prevenir algum lapso oficial, temos a seguir uma espécie de sumária rememoração do grande crítico e romancista que tanto marcou nossa vida cultural no século passado, seguindo uma certa ordem cronológica, para facilitar a leitura e o desenrolar do texto.

A infância de Virginius foi como a de José Lins do Rego, tirando o engenho avoengo do autor de Fogo morto, que, no seu caso, foi substituído por uma fazenda em Campina Grande, pertencente ao avô paterno. De fato, Virginius perdeu muito cedo a mãe, Severina Figueiredo da Gama e Melo, conviveu pouco com o pai, Pedro Celso da Gama e Melo, e foi criado por avós e tias solteironas, como se chamavam antigamente as moças que não casavam. Em célebre carta ao escritor Gilberto Amado, datada de 18 de janeiro de 1961, ele assim se refere aos seus começos: “ ... não cheguei a conhecer mãe – vagas lembranças – perdi-a no primeiro ano de vida. Pai mesmo, pouco conheci. Era telegrafista e não residia conosco, quer dizer, aqui em João Pessoa. Fui criado por avós e tias solteironas – tudo isso há de ter concorrido para certa rebeldia ou marginalismo que sempre me acompanhou na vida.”. Nesta mesma carta, ele afirma ter nascido em 19/10/1923, apesar de na sua certidão de nascimento e demais documentos pessoais constar a data de 19 de outubro de 1922. Teria o romancista de A vítima geral ficcionalizado sua vinda ao mundo, para tornar-se um ano mais jovem? Não se sabe. O mais provável, creio, é que tenha sido apenas um lapso do escritor quando da redação da referida correspondência. Virginius não era homem de cultivar essas vaidades frívolas. Entretanto, o escritor paraibano Waldemar Duarte tem uma explicação plausível para a divergência, que veremos mais adiante.

Fosse seguir a tradição familiar, tanto paterna como materna, Virginius tinha tudo para ser um político, salvo a vocação, esse chamado fundamental sem o qual ninguém é nada na vida, pelo menos de forma eficiente e feliz. Descendente de governadores e senadores (os Gama e Melo paternos e os Figueiredo maternos), seu destino foi outro, longe dos palanques, dos conchavos e da contínua conquista de eleitores, tudo que torna tão árduo - e não raro aviltante - o cotidiano daqueles que abraçam a política profissionalmente. Após rápida passagem pela advocacia militante, ele finalmente se encontrou no magistério superior e na literatura, áreas de atividade em que brilharia e marcaria época. Mas passemos então, sucintamente, aos fatos marcantes de sua biografia, para em seguida voltarmos os olhos, também de forma sucinta, sobre a sua obra.

Nascido, como dito anteriormente, em 19/10/1922, em João Pessoa, em antiga casa situada na tradicional Rua Nova, atual Rua General Osório, Virginius fez, com ótimo aproveitamento, o curso primário sob o magistério de sua tia Ana, então professora no Grupo Escolar Pedro II. Para se matricular no curso secundário (ginasial) no Colégio Pio X, também na capital paraibana, teve, segundo familiares citados por Waldemar Duarte em sua plaquete O menestrel Virginius da Gama e Melo ( A União Editora, 1987), que aumentar sua idade em um ano, o que pode explicar a divergência sobre sua data de nascimento, acima referenciada. Concluído o ginásio, foi estudar no Colégio Pernambucano, no Recife, de onde partiu para a famosa Faculdade de Direito da mesma cidade. Segundo nos conta Waldemar Duarte na plaquete citada, “Os estudos de Virginius no Recife eram custeados pelas tias que o criaram e pelo tio do lado materno Bento Figueiredo, conhecido por Belinho, ex-prefeito de Campina Grande”.

A desenvolvida capital pernambucana, com sua intensa vida cultural, iria marcar, quase que inevitavelmente, o encontro de Virginius com a boemia. Essa experiência, que iria acompanhá-lo pela vida toda, foi a de quase todos os estudantes da célebre Faculdade, jovens vivendo os entusiasmos naturais da idade, principalmente os forasteiros, distantes do controle familiar, inibidor de excessos. Ele não chegou a se exceder, é certo, mas chegou a preocupar as tias, talvez rigorosas demais, como costuma acontecer – ou costumava – com essas zelosas guardiãs, substitutas de mães.

Bacharel em Direito, em 1946, Virginius volta à Paraíba, onde vai exercer a profissão de advogado em Campina Grande, a convite do tio ilustre Argemiro de Figueiredo, irmão de sua mãe, que governara o Estado no período de 1935-1940. Aí ficará até 1952, quando retorna ao Recife para dedicar-se ao jornalismo e à literatura. Colabora então regularmente com os principais jornais recifenses, vindo a tornar-se importante crítico literário da capital pernambucana.

Voltará definitivamente à terra natal, em 1957, para tratar da saúde, dividindo sua colaboração jornalística com os jornais de João Pessoa e do Recife, além de estendê-la a veículos de outros estados, como o Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, este do Rio de Janeiro. Em 1962, ingressa na Universidade Federal da Paraíba, na qualidade de professor titular e fundador da cadeira de Teoria da Literatura, lecionando ainda as disciplinas Literatura Hispano-Americana e Literatura Portuguesa. Será na cátedra universitária que Virginius se consagrará como mestre de gerações, inscrevendo, de uma vez por todas, seu nome na galeria dos maiores homens de letras do Estado e da região, em todos os tempos. Neste ponto, impõe-se lembrar que sua formação acadêmica foi jurídica e não literária, tendo ele, tal qual seu primo Juarez da Gama Batista, construído como autodidata o cabedal de cultura que lhe permitiu exercer o magistério. O brilho de sua atuação no magistério superior, contudo, não foi unânime. Um ex-aluno seu, mesmo reconhecendo seu valor como romancista, ensaísta e crítico, fez-me restrições ao professor, que, segundo essa fonte, além de faltar muito às aulas, quando comparecia, frequentemente nada ensinava, pois ficava a divagar sobre temas que nada tinham a ver com a disciplina. A despeito disso, é certo que suas alunas o adoravam, talvez influenciadas por sua mítica boemia e por sua reconhecida verve, mas o meu amigo estudioso guardou essa restrição ao mestre.

A partir de seu retorno a João Pessoa e de seu ingresso na UFPB, ele começará a publicar, em livros e plaquetes, sua produção de crítico, ensaísta e ficcionista, conquistando diversos prêmios em nível local e nacional, conforme veremos a seguir, até a sua precoce morte em 1º de agosto de 1975, aos 53 anos de idade, de enfisema pulmonar. Mas antes lembremos um pouco do mitológico Virginius boêmio, a figura emblemática que por mais de uma década (1962-1975) ocupou, com sua cultura e sua versátil conversa, o centro da vida notívaga e intelectual da então pacata capital paraibana.

Afirma Waldemar Duarte na obra acima mencionada, com a autoridade de contemporâneo, amigo e companheiro, que “... Virginius da Gama e Melo, nas horas vagas, foi o mais autêntico boêmio que já conhecemos. E foi um boêmio que não sacrificou a sua arte. Pelo contrário: amadureceu-a. Sua boemia era trabalhada pela sua condição de intelectual, de jornalista, de sua vivência com o povo e com as mulheres de sua admiração”. Realmente. Se entrava madrugada adentro nos bares da cidade, notadamente os famosos Pedro Américo, Luzeirinho e Churrascaria Bambu, não negligenciava os compromissos matinais na antiga FAFI. Talvez porque sua boemia fosse feita mais de conversa que de bebida, o que lhe permitia recuperar-se com apenas umas poucas horas de sono. Lembram os que o conheceram que a sua mesa era democrática e plural, comportando desde políticos, jornalistas e intelectuais, até estudantes e populares anônimos. A todos recebia prazerosa e informalmente para a conversa descompromissada e fascinante, sem hora para acabar. Dele, que não praticou a poesia no sentido técnico da palavra, pode-se efetivamente afirmar que, tal como Vinícius de Moraes, viveu e morreu como poeta, epitáfio que certamente seria do seu agrado.

Não foi propriamente um homem bonito, pelos padrões convencionais. Mas foi elegante, no vestuário (sempre de terno e gravata) e nos gestos. Tornava-se, contudo, atraente, pelo brilho do intelecto. Diz-se, repito, que fazia muito sucesso entre as alunas. E agora vamos às obras.

É muito provável que ainda haja material inédito da lavra de Virginius. Suas crônicas diárias publicadas no extinto jornal O Norte – ou pelo menos uma seleção delas – nunca foram reunidas em livro, o que é uma pena, pois durante vários anos ele foi, pode-se dizer, o principal cronista da cidade, já que pontificava no diário de maior circulação e prestígio. Do que publicou, podemos citar o seguinte, com base no “perfil biobibliográfico” organizado pela pesquisadora Ana Isabel de Souza Leão Andrade, dado à luz em 1991, em edição da Fundação Casa de José Américo:

Antagonismo e Paisagem, estudo sobre alguns romances de José Lins do Rego, publicado pela Gráfica A Imprensa, João Pessoa, 1962. Em 1964, Caxias, perfil do patrono do exército brasileiro, publicado pela A União Editora, João Pessoa, dentro do Plano de Extensão Cultural do Governo Pedro Gondim. No ano seguinte, 1965, O Alexandrino Olavo Bilac, ensaio sobre o poeta homônimo, publicado pela Edigraf, João Pessoa, e Atualidade de Epitácio, conferência pronunciada no auditório da Faculdade de Ciências Econômicas de Campina Grande, no dia 29/5/1965, em homenagem ao transcurso do centenário de nascimento do político e jurista paraibano Epitácio Pessoa, mimeografado, Campina Grande. Em 1966, A Modelação, peça teatral, Companhia Nacional de Teatro, MNC, Rio de Janeiro. Dois anos após, em 1968, Os Seres, mimeografado, UFPB, João Pessoa. O volume reúne contos do autor. 1970 será um ano importante, pois assinalará a publicação de seu primeiro romance: Tempo de Vingança, pela Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. Este “é um romance político e de massas que transcorre na Paraíba – na capital e numa cidade do interior – na noite do assassinato de João Pessoa, em Recife”. Marca a passagem do escritor do campo da crítica e do ensaio para a ficção romanesca, com obra premiada e muito bem recebida pela crítica nacional. Em 1975, ano de sua morte, e publicado postumamente, sai A vítima geral, pela Editora José Olympio, Rio de Janeiro. Trata-se de um romance social, ambientado na província, com tema centrado na política local, seus personagens, seus vícios e até seus crimes. É de 1980 a publicação de Estudos Críticos, pela Editora Universitária da UFPB, João Pessoa. O volume foi organizado por Paulo Melo e reúne ensaios sobre José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Nesse mesmo ano, a mesma editora publica O Romance Nordestino & Outros Ensaios , que apresenta textos de conferências proferidas em diversas oportunidades.

Estas as obras mais importantes de Virginius até agora dadas a público. Outras, como dito anteriormente, podem existir e aguardam resgate e publicação. O acervo do autor encontra-se sob a guarda da Fundação Casa de José Américo, instituição cuja credibilidade e zelo com a cultura paraibana nos tornam confiantes na preservação e divulgação de uma obra literária que é relevante não só para a Paraíba mas também para o Brasil.

Importante observar que a trama dos dois romances de Virginius da Gama e Melo se desenrola na Paraíba, o que certamente, ao lado de outros fatores, legitima situá-los no âmbito maior do chamado “romance nordestino”, inaugurado por outro paraibano, José Américo de Almeida, com A Bagaceira, de 1928. Esse “romance nordestino” que foi tão estudado pela crítica de Virginius e que ele terminou por enriquecer com sua reconhecida ficção.

Prêmios literários foram muitos os que ele ganhou ao longo de sua carreira. Destacarei os seguintes:

1) Prêmio Universidade Federal da Paraíba, da UFPB, e Prêmio Carlos de Laet, da Academia Brasileira de Letras, por O Alexandrino Olavo Bilac; 2) Prêmio Serviço Nacional de Teatro, pela peça A Modelação; 3) Prêmio José Lins do Rego, do Instituto Nacional do Livro, pelo romance Tempo de Vingança; 4) Prêmio de Ficção da Fundação Cultural do Distrito Federal, pelo romance A Vítima Geral.

Como se vê, Virginius teve pleno reconhecimento do valor de sua produção ensaística e romanesca, fato que muito deve tê-lo confortado intelectualmente, já que para todos os efeitos era um escritor de província, como tantos que escolheram viver e trabalhar fora do implacável eixo Rio-São Paulo.

Tão importante quanto o intelectual foi a pessoa de Virginius da Gama e Melo. Pelo menos, para os que conviveram mais de perto com ele. O cineasta Ipojuca Pontes, em texto publicado em O Norte de 13/8/1975, ressalta: “... o menestrel, embora não fosse rico, era generoso: pagava-me a cerveja, os cigarros (...). O menestrel aplacou-me a vindita com doses de generosidade que aprendi, em processo lento, mas verdadeiro, destilar. Sem as lições do menestrel, que assimilei nos recônditos dos bares e nas fímbrias das madrugadas, como estaria hoje?” Essa notória generosidade virginiana, que o aproximava tanto de seus semelhantes, manifestou-se também em sua atividade de crítico literário. Gonzaga Rodrigues colheu em depoimento prestado por Ernani Sátyro a revelação do próprio Virginius sobre seu método e sua filosofia: “Só há uma coisa importante para a crítica literária – é compreender a obra criticada. Não precisa o crítico elogiar nem atacar. Ao analisar, compreendendo, ele dirá tudo. E o leitor compreenderá também”. Eis aí o crítico e o homem Virginius. Nele, compreender era uma forma de ser generoso.

Solteiro por opção ou por circunstância, foi um solitário, a despeito do desvelo das tias que o rodeavam. Mas pela vida que levou, na cátedra e nos bares, a sua foi certamente uma “solidão povoada”, para usar a bela expressão cunhada pelo jornalista Severino (Biu) Ramos para referir-se a outro célebre solitário paraibano, o de Tambaú: José Américo de Almeida.

Em sua bela crônica “Revoada”, o mesmo Gonzaga Rodrigues conta que, um dia antes de sua morte, Virginius saiu da casa de Pedro Gondim às duas da manhã. Tomou o táxi que lhe esperava lá fora, táxi que contratava para ficar às vezes o dia todo à sua disposição, já que, por opção, não dispunha de automóvel próprio, e pediu ao motorista que o deixasse na Praça Pedro Américo. “Sem dispensar o táxi, saltou e foi sentar-se, encorujado, num banco solitário, indiferente ao frio, esperando a manhã como quem espera um novo nascimento”. A manhã que viu nascer, com a revoada dos pombos, seria a da véspera de sua partida, partida que talvez ele já tivesse de alguma forma pressentido. Só isso explicaria essa poética e madrugadora despedida da cidade que tanto amou. De qualquer modo, foi um adeus e um final dignos do intelectual e do boêmio que ele sempre foi.

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  1. Meu caro Gil.
    Embora a sua fidelidade e respeito aos princípios de liberdade de manifestação, hoje tão faltos em nosso meio, gostaria de fazer pequeno reparo sobre essa análise de um anônimo (sinal de sua desfaçatez, provavelmente) tecendo críticas ao papel de Virginius, como professor da UFPb.
    Ingressei como professor da Universidade em 1965 e embora atuando em áreas diferentes da atividade magistral, mantive, com ele, os mesmos laços de amizade e companheirismo adquiridos em tempos anteriores, cimentado no ambiente das redações onde por circulamos.
    Ainda como estudante, vivenciei (junto com alguns pensadores jovens, da época, como Vanildo Brito, José Bezerra, Wills Leal e outros) a resistência que alguns professores da Universidade externavam à sua contratação e, a partir de meu ingresso na Instituição, pude acompanhar, mais de perto, a eficiência e o trato de Virginius como professor.
    Não me consta deslizes dessa natureza.
    Hoje, o que temos a lamentar é não apenas sua perda (natural, reconheçamos) e o esquecimento dado à sua figura de intelectual de peso, que tanta falta nos faz.
    Lamente-se, por exemplo, por mais recente, as comemorações lideradas pelo nosso colega, agora também nos faltando, Wills Leal, que resultaram na apresentação de alguns estudos sobre o Menestrel, estudos esses inumados em alguma gaveta secular da APL, onde Wills movimentou essa promoção.
    Por que?
    Ninguém sabe, ninguém viu...

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    1. Plenamente reconhecido seu direito ao reparo, meu caro Arael. Grande abraço e obrigado pela leitura e pelo comentário.

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