Patrício Macário, general reformado, completa cem anos, no dia em que morre, 10 de março de 1939, em Itaparica. Nesse mesmo dia, ele te...

A única coisa arrumada é a mentira

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Patrício Macário, general reformado, completa cem anos, no dia em que morre, 10 de março de 1939, em Itaparica. Nesse mesmo dia, ele teve sua canastra roubada por três ladrões. Um pouco antes de sua morte, nos festejos de seu centenário, organizado pela sobrinha Isabel Regina, Patrício Macário resolve falar da sua compreensão da vida, iniciando com a consciência de que não era imortal e que estava “indecentemente velho, viver tanto tempo é um exagero, uma coisa de mau gosto” (João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, 3ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, Capítulo 20, p. 685). Na continuidade de sua conversa, sobre a vida, ele diz da dificuldade da tarefa, por entender que “uma vida só se pode viver, não contar” (p. 687). Ainda assim, Tico, como a sobrinha carinhosamente o chama, fala, enfatizando a vergonha que sentia por não ter lutado sempre do lado do povo, mas ao lado do poder, como acontecera até a Guerra do Paraguai, por cujas ações atingira o posto de Coronel.
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F. Bernard
A vergonha se faz maior, diz Tico, sabendo que “o poder quer mais poder e o poder odioso só se conserva aumentando essa vergonha” (p. 687).

Patrício Macário, no entanto, tem a consciência e, mais do que isso, a esperança de que a mudança acontecerá, visto que o povo brasileiro está acompanhado do Espírito do Homem:

“⏤ Não posso morrer antes de garantir — disse, levantando a cabeça sem olhar para lugar nenhum — que o povo brasileiro não está só. Não porque tenha aliados, pois só quem tem aliados são os governantes, mas em razão de uma causa comum a todos os homens, por mais que não pareça assim, mesmo porque o Mal existe. Mas o Espírito do Homem também existe, não como uma quimera, como algo inventado por necessidade. Tudo mais se inventou por necessidade e a única coisa que não se inventou por necessidade, embora seja a única coisa que por necessidade existe, é o Espírito do Homem. O Espírito do Homem é universal e aspira à plenitude e à graça, tem como causa comum a todas as suas consciências essa aspiração, que se traduz na paz final de existir sem que se veja a existência, existir como essência, só existir, porque o Espírito do Homem anseia a perfeição, que é o Bem.”
⏤ p. 689 ⏤

Após a sua morte, que se dá quando ele se encontra bem sentado em casa, em meio aos convidados e à conversa, três ladrões, Leucino Batata, Nonô do Candeal e Virgílio Sororoca, roubam, entre outros pertences dos moradores de Itaparica, a sua canastra, onde se guardavam os mistérios da Irmandade do Povo Brasileiro, de que Tico Macário fazia parte plena, desde a transformação sofrida pelos dias passados na camarinha do terreiro de Rita Popó e por artes de um bom ensopado de baiacu, que o fez se sentir leve e pairar no ar, sem ter a certeza de estar vivo ou morto. Na tentativa de abrir a canastra e poder apoderar-se de seu conteúdo, Nonô, um dos ladrões, tem uma revelação que vem de dentro dela, através de uma pequena fresta, por não ter conseguido abri-la de todo: é a visão estarrecedora do que o futuro nos reserva — a ladroagem sem conta que se expandirá pela nossa nação e que nos fará sofredores, envoltos na miséria, sangue e morte.

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A ladroagem se fará por pessoas bem trajadas nos ternos e nas sedas, metendo a mão no dinheiro, mas sempre tendo vergonha de falar desse dinheiro, ameaçando prender e matar quem a ele se referisse; dinheiro nunca visto, mas sempre mandado para o exterior, e cuja procedência e cujos nomes eram muitos, como bem o atesta Nonô do Candeal, na sua linguagem estropiada:

“É verba, é dotação, é uma certa quantia, é age, é desage, é numerário, é honorário, é remoneração, é recursos alocado, é propriação de reculso, é comissão, é fis, e contisprestação, é desembolso, é crédito, é transferência, é vestimento, é tanto nome que seu fosse dizer nunca que acabava hoje e tem mais coisa para ver. Dinheiro mesmo é que ninguém fala, todo mundo tem vergonha de falar que quer dinheiro.”
⏤ p. 697 ⏤
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Toda a miséria que ocorre e ainda há de ocorrer, revelada por uma fresta da canastra, está associada à busca e manutenção do poder, sustentado pela malversação do dinheiro, cujo contraponto é a consciência no seu bom uso, em favor do bem-estar comum. No entanto, essa consciência não tem como acontecer sem que ocorra a transformação para a espiritualidade, que exige de cada um de nós um caminho único cuja busca deve ser feita e quando encontrado deve ser percorrido, como aconteceu com Tico Macário, na camarinha de Rita Popó, que lhe diz:

“[...] a magia não é feita de fora, mas de dentro. Por isso é que se fala na necessidade de ter fé para que as coisas aconteçam, pois a fé, afinal, não passa de uma maneira de ver o mundo que torna possíveis aquelas coisas que se deseja que aconteçam [...] a vida não é escrita em tabuinhas, nem suas ordenações são arrumadas como os homens loucos querem, a única coisa arrumada é a mentira, a qual é a explicação certinha.”
⏤ Capítulo 18, p. 621-622 ⏤
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Revelações feitas, assombrando os três ladrões, as alminhas brasileiras, que frequentavam o Poleiro das Almas e procuravam aprender em novas vidas, mostram-se decididas a descer e a voltar, por terem aprendido tão pouco nas vidas anteriores, por serem ainda “tão pequetitinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó”:

“O sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas grossas e ritmadas, todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechar suas janelas e aparar a água que viria das calhas. Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía.”
⏤ p. 700 ⏤
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O sofrimento e a miséria devem ser meios para a aprendizagem; a esperança, para a transformação, nunca para a resignação. Se a miséria sempre existiu não é motivo para desistir de lutar, a partir de uma mudança íntima, contra todo o mal resultante de um poder desviado de seu fulcro. Para isto é preciso a coragem de Patrício Macário que, ao escrever o seu livro de memórias, depois de depurar a linguagem e o estilo, orgulha-se de “não haver um só eufemismo no que contava. Quem era ladrão era chamado de ladrão, quem era burro era chamado de burro, quem era pusilânime era chamado de pusilânime” (capítulo 18, p. 595-6).

João Ubaldo, na sua irreverência inteligente, inverte os propósitos e nos revela a tênue fronteira que há entre ficção e realidade: para o personagem ficcional Patrício Macário, a realidade é incontornável e deve ser dita por mais crua que possa parecer; para o Brasil de hoje, que se pretende real, ela configura-se como surrealismo ou literatura fantástica, dado o fato de só existirem inocentes, inteligentes e briosos brasileiros, acima de qualquer suspeita.

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