Semana atrás me encontrei com Mirabeau Dias no escritório deste para uma despretensiosa sabatina, temas variados, mas sempre encostados na cultura e suas vertentes. Encontro que ele promove com amigos, gente da melhor qualidade, mas eventualmente abre uma exceção nesse quesito e num desses descuidos convidou-me para a prosa daquela manhã. Ao chegar lá estavam o Modesto, o Wilson, o Martinho, o próprio e João Batista . O tema da conversa não poderia ser outro: cinema. O João Batista que estava lá, era do de Brito, o que justificava a pauta.
Não demorou e a conversa escorregou das películas às casas de exibição; ou seja, aos cinemas propriamente ditos. Daí cada um foi registrando suas saudades. Essas saudades tinham nomes: Rex, Plaza, Municipal, Santo Antônio, São Pedro, Jaguaribe, São José...mais uns que minha memória recente não conseguiu segurar.
Conversa com cheiro de pipoca que acabara de estourar, as lembranças iam chegando e cada um descobria que houve um pedacinho de sua vida que passou pela bilheteria de um cinema, pagou ingresso para se entregar às fantasias escondidas num carretel de celulose. Cinema era tudo de bom. Alguém, como todos daquela turma presente à reunião, que já viu a Terra dar sessenta ou mais voltas em torno do Sol, sabe do que estou falando
Comigo as coisas foram assim também. Levando minhas lembranças a muitas latitudes abaixo, em São José dos Campos, meninote, frequentava o Cine Santana nas matinês de domingo. Antes do faroeste programado, havia um seriado, e o que mais me marcou foi “Os perigos de Nioka”. Não perdi um capítulo. Essas matinês eram prestigiadas com a presença de um doidivanas, o Zé Pupu, um quarentão desmiolado, fantasiado de caubói, revólver de espoleta à cintura, que se juntava à meninada nessas sessões vespertinas.
Mais à frente, na fase de adolescente e nos primeiros anos da maturidade, foi o Cine Palácio meu castelo de fantasias. Um luxo de cinema. Nada mais e nada menos que 1.600 poltronas acolchoadas, tapete macio nos corredores, nas paredes laterais figuras em alto relevo lembrando o tempo da nobreza e das carruagens. A saída era por corredores laterais e estes com painéis envidraçados exibindo fotografias das próximas atrações.
O forte era sessão dominical das sete da noite, onde a moçada comparecia em peso. Sessão das nove, para gente madura, mais bem comportada. Para a primeira sessão era preciso comprar ingresso antecipadamente, à tarde. Essas sessões eram lotadas, passasse a fita que passasse.
Quem de minha geração não beijou a namorada naquele conforto do melhor cinema que conheci em toda minha vida? Quem? Ah meus amigos, minhas amigas, depois de beijos na telona, como os de Deborah Kerr e Burt Lancaster em A um Passo da Eternidade, como não se animar a fazer promessas e a estar disposto a ouvir outras. Fiz as minhas e fui objeto de algumas. Nenhuma delas se efetivou.
Meses atrás estive por lá em São José, e fui verificar a quantas iam o espólio de meus anos de mocidade. Nada mais como antigamente. A minha pastelaria Alvorada, na travessa da Rua XV com o beco João Dias, evaporou. Nunca mais pastéis como aqueles do chinês mal encarado. A Galeria Rossi, decadente, não abriga mais o Salão Grego & Dito onde eu aparava minhas madeixas desde os tempos do Tiro de Guerra. Cadê o Margaridas, o botequim da Major Antônio Domingues? Nada com antes. Ou desapareceu, ou está irreconhecível.
Contei aos meus amigos de conversa, minha grande decepção ao ver o Cine Palácio. É hoje um enorme estacionamento, nada da grandiosidade de outrora. Entrei para ver o que sobrara, umas duas ou três poltronas, sujas, carcomidas. Teto em pandareco. Nada do encanto de outrora. Nada. Um roteiro todinho passou pela minha cabeça. Saí dali arrastando uma saudade machucadora de corações. Contei isso aos meus companheiros de conversa. Foi quando Mirabeau me fez o desafio:
— Vamos imaginar o contrário. Se o Cine Palácio fosse o autor a observação. Ele que o visse e tirasse as conclusões do que o tempo fez com você.
Assustei-me com a proposta, mas prometi responder neste poderoso rotativo, a tão inusitada observação. O que diria o Cine Palácio ao seu irmão (que virou loja) distante algumas quadras, o Cine Paratodos, a respeito desse escrevinhador aqui?
Poderia ser algo assim:
— Olha só o Luiz Augusto, será ele mesmo? Cadê aquele mocetão garboso, que aparecia por aqui todo pimpão com as namoradas? Uma de cada vez, é claro. Eu contei umas quatro. Cadê? Olhe só o andar, é lento, nem me lembra o rapazola serelepe de sorriso largo, esbanjando alegria e juventude. O rosto está amarrotado. Dá até para ver a alma dessa criatura. Cadê os sonhos? Cadê as quimeras? Parece um deserto por dentro, desmotivado, fazendo uma coisa aqui, outra ali, escrevendo quando a preguiça lhe permite uma trégua. Sabe, meu irmão Paratodos, você ao menos virou loja eu estou aqui em ruínas, mal o quanto você já deve saber. Luiz Augusto não está melhor do que eu.
É isso, Mirabeau. Sabe de uma coisa? Também acho que o Cine Palácio teria razão, se lhe fosse concedida a tal possibilidade de dizer umas verdades a meu respeito.