Há pessoas que pensam ser a interpretação de texto algo que lhe cai gratuitamente no colo. Retomando o que dissemos em texto anterior, a interpretação exige um processo lento de aprendizagem, que passa pela aprendizagem da leitura e, obviamente, por estágios demorados de escolaridade, o que supõe a existência de um projeto educacional consistente e contínuo, se quisermos que todos tenham acesso aos meios de chegar ao exercício da interpretação, ponta de toda uma trajetória.
Não é, portanto, de uma hora para outra que alguém se habilita e tem condições de interpretar textos, mais ainda se considerarmos que, a depender do estilo do autor, a interpretação exige uma grande complexidade, que envolve, além do hábito de leitura, a aquisição de um amplo horizonte de expectativa, cuja constituição é formada com a cultura, não só com a literatura.
Há ainda uma outra demanda importante da interpretação: para além do nível da significação de um texto, ela exige que o candidato a conhecer os meandros da escritura atinja a sua significância ou leitura em segundo grau. Em outras palavras, a interpretação requer do leitor uma verticalização de conhecimentos que não se adquire a curto prazo, mas que acontece de maneira lenta, frequente, persistente, progressiva e cumulativa. Para deixar bem claro: não há como existir interpretação de texto sem um longo período de aprendizagem e dedicação à prática da leitura.
Peguemos, como exercício, um trecho de Os sertões, de Euclides da Cunha:
“No entanto, a expedição atravessara violentíssima crise. Tivera cerca de mil homens, 947, entre mortos e feridos e estes, com os caídos nos recontros anteriores, reduziam-na consideravelmente.
Impressionavam-na, ademais, os resultados imediatos do acometimento. Três comandantes de brigadas, Carlos Teles, Serra Martins e Antonino Nery, que viera à tarde com a 7ª, estavam fora de combate. Numa escala ascendente, avultavam baixas de oficiais menos graduados e praças. Alferes e tenentes haviam, com desassombro incrível, malbaratado a vida em toda a linha. De alguns citavam-se, depois, os arrojados lances: Cunha Lima, estudante da Escola Militar de Porto Alegre, que ferido em pleno peito numa carga de lanceiros concentrara os últimos alentos no último arremesso da lança caindo, em cheio, sobre o inimigo, feito um dardo; Wanderley, que precipitando-se a galope pela encosta aspérrima da última colina, fora abatido ao mesmo tempo que o cavalo, no topo da escarpa, rolando por ela abaixo em queda prodigiosa, de titã fulminado; e outros, baqueando todos, valentemente – entre vivas retumbantes à República – haviam dado à refrega um traço singular de heroicidade antiga, revivendo o desprendimento doentio dos místicos lidadores da média idade. O paralelo é perfeito. Há nas sociedades retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias revoltos da República tinham imprimido, sobretudo na mocidade militar, um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional, desvairando-a e arrebatando-a em idealizações de iluminados. A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo, em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória – com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática, com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro...”
A primeira coisa que se impõe, numa tentativa de interpretação, é a contextualização dos fatos. Contextualizemos, portanto. Trata-se de um trecho da Parte IV de “A Luta” – Quarta Expedição, cujo capítulo V, diferentemente dos demais, é o único a ter um título, “O Assalto” (2ª edição, Ubu/Sesc São Paulo, 2019, p. 419-420). De modo a situar o leitor, esclareçamos que estamos diante da quarta expedição enviada a Canudos, após o fracasso retumbante e trágico das anteriores, tendo em Euclides da Cunha uma testemunha dos acontecimentos, o que não acontecera antes.
Essa expedição, comandada pelo General Arthur Oscar de Andrade Guimarães e que contava com batalhões enviados de todos os estados, inclusive o 27º da Paraíba, cometeu os mesmos erros que as precedentes, reforçando a característica de improviso no enfrentamento dos jagunços: desconhecimento da região, imobilidades prolongadas, excesso de cargas, como os canhões e, sobretudo, “um Whitworth de 32, pesando 1700 quilos!”, “um trambolho”, “monstruoso espantalho de aço”, com que se pretendia assustar os sertanejos (Quarta Expedição, Capítulo II, p. 345).
A intrincada hierarquia e a falta de planejamento e de estratégia, associada à falta de provisões (“as colunas partiram da própria base das operações em situação absolutamente inverossímil – à meia ração”, p. 345), levarão a expedição, apesar de tomar o morro da Favela, a ser sitiada pelos jagunços, promovendo número exacerbado de mortos, feridos e desertores, batida pela tática de guerra de guerrilha dos jagunços, por reincidir nos erros das expedições passadas, que o belíssimo paradoxo de Euclides da Cunha retrata de maneira lapidar: o estrondar de “oitocentas Mannlichers” capitula “sob o espingardeamento impune de um ajuntamento de matutos” (Capítulo III, p. 374).
A desorganização de uma campanha sem estratégias definidas, confiando no número de combatentes e no poderio bélico, não tem como enfrentar o negaceio tático dos jagunços, bem protegidos pela terra e pelas serranias. O fato é que a chamada coluna Savaget encontrou-se em situação que sintetiza o paradoxo, mais uma vez característica do acontecimento, imobilizados sem ter como avançar ou recuar, traduzida como “forçadamente heroicos, encurralados, cosidos a bala numa nesga de chão...” (Capítulo IV, p. 386). Como num suplício de Tântalo, ocupando o morro da Favela, mas presas do inimigo emboscador, “alguns se distraíam contemplando o arraial intangível” (p. 400).
Chegamos ao Capítulo V – “O Assalto”. Verifica-se logo a ambiguidade do título. Com uma força nunca dantes vista, a quarta expedição está pronta para o assalto definitivo ao arraial de Canudos, mas ela é que é assaltada várias vezes, a ponto de, entrando na armadilha do inimigo, ver-se imobilizada sem ter com sair do espaço conquistado, o morro da Favela. É a alegoria do touro e da sucuri a que alude Euclides da Cunha (Capítulo IV, p. 390): quanto mais o exército se desdobra em esforços, mais é enredado pela tática dos jagunços de avançar, recuar, assediar e restringir.
Num ímpeto, os batalhões avançam para dentro de Canudos, sob as balas e sofrendo perdas de seus efetivos, levando a luta ao corpo a corpo, dentro da cidadela, de modo desorganizado, torturados pela fome e pela sede, presas fáceis, atraídos ao abate por tiros à queima-roupa. Aí se encontra a explicação de quase mil homens, 947, fora de combate, entre mortos e feridos.
Feita a contextualização necessária, o que implica o conhecimento sistêmico do livro, duas coisas são importantes no texto apresentado para a interpretação. A primeira é que o fanatismo evocado não se restringe aos jagunços. Os soldados também são fanáticos, daí a comparação com os templários. A guerra é santa de um lado e do outro: para os jagunços, o que está em jogo é o “Bom Jesus misericordioso e milagreiro”, cujo símbolo maior é o Conselheiro; para os soldados, é a “luta pela República e contra seus inimigos imaginários”, que tem como símbolo, com a mesma fé que se tinha na cruz dos templários, o marechal Floriano Peixoto, em efígie, “colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze”.
Desse modo, vemos como Euclides não exalta a ação do exército, pois já não a vê com os mesmos olhos que foram enviados para Canudos: rebelião de fanáticos monarquistas que querem derrubar a república recém instaurada. O impacto causado pelo conhecimento da situação in loco, que se dá apenas a partir da quarta expedição, fez o escritor mudar de ideia e ver que tudo se tratava de um grande equívoco, uma comédia de erros com alta dose de tragicidade, que deveria ser enfrentada de outra forma. Perceber que os dois lados estavam sendo usados e mal informados, quanto à verdadeira natureza do conflito, leva-o a mudar de ideia e a refletir. É dessa reflexão que uma reportagem destinada ao esquecimento se transforma em um uma excepcional, sem paralelos em toda a América.
Se não toma totalmente o partido dos jagunços, Euclides da Cunha expõe a nu as ações do exército, em todos os aspectos, sobretudo no concernente ao excesso de força empregada, diante de miseráveis ignorantes explorados na sua boa-fé. A segunda coisa é um termo usado pelo escritor que passa, naturalmente, despercebido numa leitura rápida, mas que não pode ser desconsiderado numa interpretação que requer o olhar miúdo para o detalhe: “titã fulminado”.
O combatente Wanderley é morto, em queda prodigiosa tal qual um titã fulminado. Ora, Euclides alude claramente à Titanomaquia, a luta de Zeus contra os titãs, uma das partes substanciais da Teogonia de Hesíodo (versos 617-721), poema do século VIII a. C. Para poder estabelecer a ordem e coibir as injustas desmedidas cometidas pelo pai, Cronos, e pelo avô, Uranos, Zeus luta contra o pai e os tios, que são os titãs. Ao vencê-los e aprisioná-los, Zeus se torna uma divindade cósmica, no sentido grego da palavra, de organizador, cujo governo se caracterizará pela distribuição do poder e da justiça.
Erudito, Euclides sabe que a sua alusão ao “titã fulminado” não passará em branco, pois essencial para que se enxergue no jagunço uma justiça buscada, fulminando, com os seus clavinotes e espingardas, como Zeus com os seus raios, as desmedidas dos titãs das forças governamentais.
É de uma preciosidade a frase que narra a morte de Wanderley, “rolando” do topo da escarpa “abaixo em queda prodigiosa, de titã fulminado”. Nada está em excesso ou inadequado à titanomaquia, afinal os titãs, derrotados, sofrem, literalmente, uma queda, rolando do Olimpo ao Tártaro, o inferno dos deuses, no local mais profundo da Mãe-Terra (versos 717-721), cujo cumprimento é medido pelo tempo de queda de uma bigorna de bronze: o mesmo tempo de queda de uma bigorna do Céu para a Terra – nove noites e nove dias – será observado se uma ela cair da Terra para o Tártaro atingindo-o no décimo dia (Teogonia, versos 722-725).
A queda dos titãs, por outro lado, foi deveras um fato prodigioso, levando em consideração o que a palavra significa em latim: algo que aparece antes, evento maravilhoso anunciado pelos deuses, assim como a queda já fora anunciada pelo oráculo de Urano, o Céu, e de Gaia, a Terra (Teogonia, versos 207-210; 459-465). Diga-se, enfim, que são os filhos de Uranos, irmãos dos titãs, os Ciclopes (sem qualquer relação com Polifemo e com os outros ciclopes da Odisseia), que fabricam as armas, com que Zeus os abate e provoca a sua queda – os raios – e que passam a ser atributo dessa divindade (Teogonia, versos 501-504). Lembremos que as armas e munições deixadas pelas forças expedicionárias, em várias oportunidades, sobretudo por ocasião da derrota da terceira expedição, a expedição Moreira César, vai servir para municiar os jagunços, conforme o próprio Euclides da Cunha nos revela:
“Assim na distância que medeia do Rosário a Canudos, havia um arsenal desarrumado, ao ar livre, e os jagunços tinham com que se abastecerem a fartar. A expedição Moreira César parecia ter tido um objetivo único: entregar-lhes tudo aquilo, dar-lhes de graça todo aquele armamento moderno e municiá-los largamente” (“A Luta”, Parte III – Expedição Moreira César –, Capítulo VI, p. 324).
Engana-se, no entanto, quem acha que Euclides da Cunha está fazendo apenas uma referência a um texto clássico como a Teogonia. O texto é base para o escritor falar da tragédia que envolve os dois lados do combate, a força do exército e a força dos jagunços. É preciso entender, para compreender o trágico ali existente, que na Teogonia, assim como nas obras Homéricas, encontra-se o gérmen da tragédia. No momento em que Euclides da Cunha reconhece nas forças do governo um “heroísmo infeliz” (Capítulo VI, p. 437), diante um “êxodo penosíssimo”, que os transformava, “ao mesmo tempo miserandos e maus, inspirando a piedade e o ódio – rudemente vitimados, brutalmente vitimando” (p. 436), não há como não reconhecer a tragicidade do episódio, dentro dos moldes da tragédia clássica, bem compreendida pelo escritor.
Ambos, soldados e jagunços, são vítimas de uma situação que dá “ao conjunto um traço de miséria trágica” (p. 437), com a mobilidade do termo titã passando, indistintamente e conforme a ocasião, para um e para o outro. Se, pelo estado de penúria, os soldados revelam-se para o povo como “titãs resignados e estoicos” (p. 438), os jagunços, diante da derrocada do arraial, são também “titãs fulminados” (Parte VI – Últimos Dias –, Capítulo III, p. 520). Sem meias palavras, o trágico existente no episódio da titanomaquia é retomado como estruturante, em Os sertões, por isto maravilha o leitor perceber a genialidade de Euclides, presentificando o mito numa construção estilística, em que a metáfora inicial se transforma em brutal realidade. Na primeira alusão a “titã fulminado”, a metáfora puramente estilística se impõe; na segunda referência, ela se aproxima da crua realidade, diante do canhoneio a que o arraial de Canudos é submetido e por que é destruído. Não esqueçamos que antes de “titã fulminado”, o jagunço é descrito como “titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos” (A Luta, Parte I – Preliminares –, Capítulo III, p. 230), devidamente protegido pela natureza. A natureza, em si, é, ela própria, um cenário titânico, na defesa de seu habitante, inóspita e indomável, para os que tentam desafiá-la sem conhecerem seus meandros:
“As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas de gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs (“A Luta”, Parte II – A Travessia do Cambaio –, Capítulo III, p. 250).
A “envergadura titânica” do coronel Carlos Teles (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição –, Capítulo III, p. 369) encontra paralelo na transformação por que passa um negro feito prisioneiro e levado ao acampamento, “em cambaleios” e com “o passo claudicante e infirme” (Parte VI – Últimos Dias –, Capítulo II, p. 509). Condenado ao suplício do baraço, a narrativa mostra-o com uma altivez que a força do governo não tinha e, ao mesmo tempo, faz a denúncia de 4 séculos de descaso e de opressão. Vale a pena ver o texto de Euclides da Cunha:
Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa... (p. 510)
Vê-se, portanto, que numa dobra do texto pode se esconder um elemento decisivo para a sua significância, que só será possível com a interpretação, não com a significação em primeiro grau. Interpretação não se faz como um passe de mágica, num estalar de dedos ou na prolação de abracadabras tão inúteis quanto vazios. Ela depende, substancialmente, de um longo, paciente e interminável exercício, que começa na base, com a aprendizagem, literal, do bê-á-bá, e se espraia na rede interminável de comunicações com que se tece o texto.