Era sempre natural – nesse até então consentido mundo de matéria especular e furtivas substâncias, onde se há entesourado uma boa senão preciosa parcela de saber ingênito, comum a todos, e onde cada um deles parece deter sua própria, embora insignificante, parcela de ações ordinárias daquela que foi (e é), seguramente, a mais antiga e vasta das empresas do mundo, cujo elo com as origens viera se mantendo desde seus primórdios como empreendimento impróprio para homens e bichos, portanto sendo anterior à irrupção da dor e do primeiro enigma - que uma aluvião de crendices, orlada por selo de tradição e realimentada pela boataria e toda sorte de possibilidades que assim pudesse aventar, surgisse a intervalos mais ou menos regulares, para merecido deleite do imaginário coletivo.
Uma gente que, a bem da verdade, conhecia gelo pelas pequenas amostras trazidas em algumas chuvas de janeiro, isto, porém, muito antes que os vizinhos das terras baixas ao norte tivessem energia elétrica para fabricá-lo – e com o qual contariam sempre, sobretudo para enfrentar o torrefaçante calor que em certos momentos lhes chega a criar um clima de constrangimento entre familiares em casa, quando um passa a ver o outro como alguém que o impede de tirar a roupa — e trouxessem a novidade para as feiras do sábado: os incríveis sorvetes e picolés, onde seriam lambidos com cuidado e admiração — em seu lugar de origem os sorvetes eram (são) praticamente bebidos, e os picolés mordidos em grandes bocados, para diminuir a perda bastante veloz que se dá ao entrarem no clima ambiente.
Que nunca estavam habituados com o ouro, trazido geralmente pelos dedos dos primeiros doutores que chegavam e partiam, ou por intermédio de orelhas e colos ciganos que nem bem chegavam, já partiam. Um dia, no entanto, desencavariam aquele brilho de filões que não se sabia tão próximos, gerando, com isso estadias mais frequentes, fossem de doutores, fossem de ciganos, e também mais prolongadas. Com esses últimos, porém, aprenderiam a fazer do precioso metal uso mais apropriado para necessidades suas, bem mais práticas: moldado nos terminais da mandíbula.
Costumavam por isso pagar o preço – aliás, módico – de manter silêncio durante tempestades, não rir, e, principalmente, nunca gritar ou gargalhar quando espreitados por elas, pois havia o risco de atrair a ira minuciosa dos relâmpagos.
De boa-fé, mas que entre os mistérios insondáveis dos livrinhos de catecismo e os enigmas propostos pelo Lunário Perpétuo — que traziam, entre outras coisas uma barafunda taxonômica capaz de converter o cânone instrui e diverte, em sua antítese confunde e aborrece —, dedicam-se, contudo, a melhor entender esses últimos, já que nesses podem colher as respostas na última página, de cabeça para baixo.
Saem da missa dominical ainda com os gritos do sermão ecoando na cabeça – façanha de Davi, batalha de Josué – direto para escutar bravatas de cantadores, capazes também de derrubar gigantes e muralhas sem outro motivo que provocar o riso.
Quando ouvem sobre a sabedoria de José, cativo no Egito, não esquecem a inteligência da donzela Teodora, cativa em Bagdá. Veem nas histórias de Jó e Pedro Cem – frequentadas por bocas diferentes como o vigário e o cordelista – o mesmo infortúnio seguido de redenção.
Intersecções entre relatos bíblicos e casos populares nunca causaram qualquer tipo de suspeição em relação às fontes de procedência, afinal não contestar a legitimidade dos primeiros equivale a garantir o sucesso das segundas, numa operação mais ou menos assim: Se Jesus havia transposto peste de homens para porcos, aos quais lançou num abismo, por que razão Dagoberto, pobre vaqueiro expulso da fazenda por amar a filha do patrão, não havia de querer (e poder) incorporar este amor num boi muito do dengoso que, à noite, ia mugir na janela da amada Genoveva? A bíblia, pois, servia de copião para seus romances terrenos, incorporados através de milagres que muitas das vezes assumiam sinistrizes dignas de uma nação Saci.
Histórias com rubricas de milagres, martírios, feitos heróicos, queda, vingança, maldição, malefícios, fortuna, provação, praga, prodígios, combate de titãs, gerações condenadas, castigos da avareza, porfias de todo tipo, sacrifícios, amores fadados, traição de entes queridos, premonição, sortilégios, iluminações, penitências, assombração, alma penada, redenção, transubstanciação — ora —, podiam acontecer com qualquer um, ninguém está livre de nada neste mundo.
Tanto, que, por aqueles dias acreditavam nisso: uma nova geração de seres estranhos vinha acontecendo. Um tipo especial de criatura velada, indócil, e que pelo dote natural de enxergar na escuridão, a tudo via e de tudo sabia, embora os velhos e mais experientes do lugar apostassem: daquela feita não passavam os protagonistas de meros iniciantes – aprendizes – numa arte de poderes malditos.
Na opinião dos encanecidos, nem tão cedo esses moços estariam aptos a cumprir a penitência que faria de algumas noites de terça ou sexta-feira um pandemônio de cães e agricultores com paus e foices, quando uma vez perseguidos teriam de passar nas sete fontes (podiam ser poções, cacimbas), cruzar sete cemitérios (valendo capela, cruz-de-beira-d’estrada), passar sob sete carvalhos (cajueiros mesmo), varar sete colinas (ou sete vezes a mesma, para ficar mais fácil), quando só então poderiam voltar para o espojadouro - quem sabe uma rede num atulhado “quarto do muro”- e ter assim o merecido desencanto de volta. Tarefa difícil para quem, segundo eles, não passavam de garotos adolescentes, já que deixavam a timidez impressa nas pegadas de suas pequenas excursões noturnas, descuido, aliás, inadmissível para lobo calejado.
Discutiam e chegavam a pôr dinheiro na questão, um deles – é o velho Sebastião Branco, que vai jogar aí o prestígio de quem recebeu dos netos a alcunha querida de papai da música – assegura aos frequentadores matinais da barbearia de Aprígio, ter escutado na noite anterior estranhos acordes no meio da ventania, diz ter ouvido seguidas vezes, que numa delas houve até algum alvoroço de galinhas, porém, fosse lá o que fosse, não se enganava ele quanto a não ser aquilo de modo nenhum coisa de profissional, pois era bastante o timbre insustentável da voz, característico de imberbes, para que se denunciassem: quando não acontecia de encorpar naquele agudo inicial que arremete o lamento, falseteava, miseravelmente, no grave quearremata.
Acabavam tripudiando – claro que por outras palavras – do que julgavam ser grande pretensão de algum inadvertido que estaria descumprindo uma regra geral dos adensamentos, ou simples lei universal da redundância: a tentação irresistível de qualquer ente das coisas – abjurando raríssimas tribulações do acaso – vir a tornar-se naquilo que, efetivamente, pode.Transcurso esse que é operado num padrão à princípio vago – dentro de uma ordem, ou classe, ou estado da matéria –, mas que irá se encurralando, capaz de pouca ou quase nenhuma variação no final, depois de ter atingido classificação de espécie ou se desdobrado de um estado para outro dentro da seqüência possível. Talvez acreditassem que nada fosse impossível, porém - como bons velhos que eram -, desde que as coisas se dessem dentro da tradição do estabelecido.
Talvez estivessem certos quanto ao modo sequencial de que uma goiabeira vem ater-se na goiaba, não na goiabada. O que se apoderou da lava foi pedra, e isso muito antes de vir um dia a ser piso, ou muralha. Quanto ao menino, é preciso concordar que este terá primeiramente de alojar um homem, podendo esperar daí o que a sorte lhe reserva.
Seguissem o curso natural das coisas e estariam livres de percalços como aquele musical, de que falou o velho Sebastião Branco, percalço, que – por oposição –, os remetia a uma história prístina, passada em terras dos Caluetes e que teria sido contada e vivida pelo próprio Romano: num fim de tarde mandou Percival – vaqueiro seu, calejadão e sisudo, de quem as pretas supersticiosas diziam coisas estranhas – reunir o gado disperso pelo campo e trazê-lo de volta.
O acontecido: Percival não vê a lua prematura – cheia – elevando-se por trás de umas oiticicas e é apanhado por ela justo quando entoa aquele aboio pungente – rasgado, prolongado, coisa de gado — com que vaqueiros apascentam bois. O transe começa por onde parece mais provável, e, de qualquer modo já se encontra em ação — a voz: o lamento de um vai se transformando no lamento do outro e o que aí resultará, ouvido em toda redondeza, é um uivo formidável – aterrador —, que, ao invés de agrupar o rebanho, contribui para mais dispersá-lo.
Romano — Romano Caluete. Cantador e fazendeiro, mais conhecido por Romano do Teixeira, ou Romano da Mãe D’água, pertence a primeiríssima geração de cantadores do nordeste, sendo um dos maiores. Seria emulado por pelo grande Ugulino Nunes da Costa – seu conterrâneo e inventor do “desafio de viola”, para os quais confeccionou a própria, que foi a primeira. É sempre lembrado por ser um dos protagonistas do mais célebre de todos os “duelos”, travado entre Inácio da Catingueira e ele, no ano 1871, no mercado público de Patos. O que se sabe dessa peleja são os versos refeitos por Ugulino.