Manual de consulta breve sobre a diversidade
de homens nascidos no ventre da Mãe Terra
Olhos que se abrem inocentes
não tardam em cintilar soberba.
Retalham o em torno lançando farpas no vazio da mente.
Retalham o em torno lançando farpas no vazio da mente.
Há o entristecido que desperta
e sobrevive como um miserável,
ao som da Morte, sussurrando
seus atropelos de silêncio.
Um outro que resvala no acaso,
se faz vida ̶ atordoado ̶
e sonha em derrubar da janela
o Sol para ofuscar o tormento.
E aquele matreiro precoce
a acumular seus proventos
na peia dos filisteus,
no relento dos desterrados.
O sem-pressa, aquebrantado,
temeroso de som e sombra
que renega ter saído
do beco tranquilo,
do útero,
do sossego da placenta
onde se fez o princípio
de sua febril tormenta.
Este outro se apresenta
à vida ̶ é um anjo.
Segue os dias descuidado,
nada sabe, nada espera,
faz o que faz nesta Terra
sem sopro de praga ou espanto.
Um que mira
com suas criptas ardentes,
violento, distorcido,
que corta, sangra,
reproduzindo a discórdia,
pavor, desastre e medo.
Sabe do manto,
do relento,
aquele acalentado
pelo Divino Pai Eterno,
que se intimida com o pecado
e desfia de cor o terço.
Desperta o grandiloquente,
senhor absoluto
da partitura da linguagem
e do poder do gesto.
Senhor de palanques,
tecelão de mortalhas,
ímpar, único,
fundador de reinos,
que desconhece a última hora,
renega o patíbulo
e sai da vida um mito
com os punhos cerrados.
Admira-se o afetado
pelo germe de Narciso,
o que passa, silhueta
e porta voz do egoísmo.
O descontentamento
que se insurge
no peito do sem consolo,
o faz buscar o escuro,
o vão, o instante do salto,
a fuga definitiva,
o abraço das rochas
̶ o impacto.
Para tudo de ousado
há aquele que se ocupa
do desafio, do improvável,
do combate por todos.
Ao se pensar em santo,
seja em canto ou em prece,
há o que simples se veste.
Sai a tratar dos carentes,
buscando a cura do espírito,
refazendo de Cristo os passos.
Com a leitura dos astros,
cristais, cartas ou búzios,
se afiança o ser místico,
do que apregoa o destino.
De gestos delirantes,
do rincão ̶ (in)consciente,
desprezando a luz-resgate
do Mundo prático vigente,
sem carecer de nada
no Universo de si mesmo,
vive o de louca alma,
de aura dionisíaca,
tecendo na mente a glória,
cavaleiro da triste figura.
No que há de diverso
no gênero disperso e retinto,
um pouco de cada traço
mistura-se em cada uomo.
Contudo surge a ameaça,
também oriunda do ser,
líquida imagem, uma farsa,
onipresente equívoco,
que na surdina, entrelinhas,
mídias, papéis multicores,
distorce a multiplicidade,
faz um molde, manipula
a sublime incoerência
do ser, da arte, do homem.
Poema do livro
Manual para Estilhaçar Vidraças
■ Jorge Elias Neto
Editora Cousa, 2021 Disponível em cousa.minestore.com.br
Editora Cousa, 2021 Disponível em cousa.minestore.com.br