Gil Messias não é escritor. Escritor qualquer um pode se declarar, basta juntar alguns textos, enfeixar em um volume e pespegar a si próprio o que considera uma láurea. Gil Messias é mais, muito mais. Gil Messias é leitor. O escritor vem por acréscimo, vem do transbordamento da leitura que, por não poder ser represada, Gil, na sua generosidade, resolve compartilhar conosco, agradecidos leitores. É leitor voraz, atento, avisado, que reconhece a necessidade das releituras (“Nas releituras é que se descobrem as coisas”, Os escritores de Juscelino, p. 104), símbolo do amadurecimento, na percepção do escrito (“A primeira leitura, portanto, é a da criança, a releitura já é coisa de homem feito”, Caetano e Vandré: caminhos opostos, p. 345). E o leitor é proveniente da necessidade de saber e de conhecer (“sou um curioso de marca maior”,
As cartas de Freyre e Bandeira, p. 79), que precisa estimular a curiosidade, termo bem longe do seu sentido de pura bisbilhotice, guardando seu sentido original de cuidado, do que busca saber minuciosamente, pois a compreensão analítica está no detalhe, como ele o diz muito bem ao falar da sua paixão pela leitura dos diários:
“No fundo, trata-se talvez de mera curiosidade sobre a chamada natureza humana, não uma bisbilhotice de fofoca, mas antes um desejo do intelecto de conhecer o outro em sua verdade mais íntima, para daí colher impressões, reflexões e lições, porque sempre se aprende algo nesses passeios memorialistas”
As memórias dos outros, p. 291
É claro que, desdobrando-se do leitor, algumas vezes o escritor, sobretudo machadiano, dá o ar de sua graça, em frases como:
“Ando a ressuscitar Lázaros sem possuir dons ou santidade para tanto”
Segredos descobertos, p. 107
“A verdade tem a cara limpa, sem maquiagem nem trejeitos”
Retrato do cronista, p. 158
“As declarações de amor – assim como as crônicas – não admitem o sujeito oculto”
Ou alguém duvida da existência de uma boa página de ficção contida na apresentação sucinta e misteriosa abaixo, na maneira como Gil Messias retoma Juarez da Gama Batista, traçando o perfil de José Américo de Almeida?Primeira pessoa do singular, p. 309-310
“Parecia um homem comum. Talvez um funcionário público modesto, talvez um guarda-livros, antiga profissão fadada à extinção, pelo menos no nome”
De pé, na esquina, esperando o bonde, p. 377
É este escritor, que surge de dentro do leitor Gil Messias, que nos encanta. Por isto mesmo, roubei a expressão de William Costa, quando da sua apresentação do seu livro, O redator de obituários: crônicas, artigos e talvez ensaios (João Pessoa: Ideia, 2022), para dela fazer o título do meu texto. Encontro-me, portanto, “sob o cálamo de Gil Messias”, na tripla significação que a palavra pode ter, a do pergaminho, a da pena rústica que corre sobre o pergaminho, e a da flauta. Gil escreve à moda antiga, com apuro, paciência, escolhendo o vocábulo, pontuando a frase com a harmonia certa, de modo suave, como quem toca uma frauta ruda ou doce avena. Os ecos dos bons escritores lidos parecem ecoar em seus ouvidos e as crônicas e ensaios surgem com uma fluência tal que, aos desavisados, poderia parecer fácil o ato de escrever com simplicidade.
Por outro lado, estou plenamente convencido de que o lugar da crônica é o livro impresso. O jornal e o blog representam apenas o momento da sua apresentação, às vezes, por conta do efêmero que ali se encontra como assunto. Magicamente, porém, ao deixar o meio eletrônico do blog ou da página impressa do jornal, a crônica revela a sua perpetuidade, ao mesmo tempo que revela o quão efêmero mesmo é o jornal. Dificilmente alguém retorna ao jornal, mesmo passados alguns dias apenas de sua publicação. Ao livro, retornamos sempre, desde que ele nos comova, que ele exerça o papel que cabe à criação, sacudindo e embaralhando as nossas emoções, função da estesia. O meio eletrônico, por mais que esteja mais à mão do que o jornal ou do que o livro, ele não é tão convidativo quanto este artefato milenar, manuscrito ou impresso, que, para o bem e para o mal, mudou a história da civilização, assim como disse o arquidiácono de Paris, Claude Frollo, a Jacques Coictier, médico do rei de França, Louis XI, ao lhe mostrar, em sua cela, em Notre-Dame, um livro impresso e considerá-lo em relação à majestosa catedral: “Le livre tuera l’édifice” (O livro matará o edifício. Hugo, Notre-Dame de Paris).
Sem querer destruir Igreja alguma, mas tendo opiniões fortes, firmes e com fina ironia sobre a doutrinação que cega e faz o doutrinado ter uma certeza inabalável sobre o que lhe foi incutido na mente, Gil Messias escreve crônica, artigos e ensaios, sim, com uma leveza homóloga ao seu perfil de homem fino, culto, educado, reservado, mas com a rijeza moral e intelectual incomum, sobretudo nos nossos dias de exposição frequente nas redes sociais, quando montanhas vivem alardeando os ratos que parem. O seu livro nos encanta para além dos seus textos: capa, desenho, título, diagramação, tudo é harmônico e convida a dar vida e sobrevida às suas crônicas e ensaios, quando bem tratados e transformados em volume (Aproveito a ocasião e parabenizo a Editora Ideia pela beleza plástica do volume. Trabalho que não fica nada a dever às grandes editoras, que comandam o nosso mercado editorial. Livro bonito, bem feito e bem acabado, produzido com o propósito de, internamente, parecer com as antigas brochuras).
O ensaísta se revela em muitas ocasiões, sobretudo ao falar da morte, seja a de Stephan Zweig e da mulher, seja a visita a seu túmulo, seja a de Machado de Assis. É, sobretudo, nos dois ensaios sobre Machado de Assis, que Gil Messias revela o leitor que reflete e escreve com elegância o resultado de suas leituras, fazendo considerações sóbrias e apropriadas, harmonizadas com uma visão equilibrada, mas que não rouba do leitor, com quem permanentemente dialoga, a pungência do seu pensamento. É só ler o ensaio sobre o livro Vingança, não. Ensaia ainda, aqui e acolá, uma análise poética sobre Ledo Ivo, Adélia Prado, Affonso Romano de Sant'Anna, Drummond; uma comparação como a de Camus com Daoud; perfis como o de Afonso Arinos, Gilberto Freyre, Juarez da Gama Batista, sem nunca perder o prumo do cálamo e do estilo.
Outro fator de encantamento, que me levou a uma leitura continuada do livro, é que Gil Messias escreve, não para alcançar, reivindicar ou reclamar a glória de ser escritor ou por não ter sido assim reconhecido como esperava. Escreve por amor às leituras que fez, sem açodamento, com espírito calmo e equilibrado, apegando-se ao que ficará mais do que algumas linhas escritas ou impressas: o sabor e o saber que seu espírito conseguiu destilar dos escritores que lhe são caros. Na leitura dos diários de Celso Furtado, por exemplo, Gil mostra essa sua veia de leitor avisado que vai pescando nas profundezas as pérolas mais brilhantes, tecendo os comentários cabíveis ou não os tecendo, carimbando um “sem comentários”, que já é por si só um excelente comentário, como ao referir-se ao que diz o economista do saber de experiências feito:
“Seria totalmente impossível realizar uma reforma administrativa do tipo da que pretendemos se as decisões últimas dependessem dos homens públicos do Nordeste”
Sobre os “Diários” de Celso Furtado, p. 235)
Afinal de contas, “o verdadeiro desenvolvimento se traduz em investimento no homem” (idem, p. 239). Ao garimpar preciosidades como essas, Gil nos faz perceber o quão pobres nós somos, por aceitarmos e ainda reverenciarmos o jugo de políticos que têm a esmola ou a migalha jogada ao pobre como grande feito...
Redator de obituários é o título de uma de suas crônicas, referindo-se à inusitada profissão de obituarista, a partir de um texto de Gay Talese, sobre um profissional dessa área, pertencente ao The New York Times. Como título, no entanto, é um achado literário, tendo em vista que tem vida própria, ainda que Gil Messias não escrevesse sobre a morte de algumas pessoas ou se a profissão não existisse. É uma ficção pronta, por pensarmos que existem pessoas que antecipam, ao menos no papel, a morte de outras, fazendo disso a sua profissão, de modo apenas a ter uma matéria à mão, que concorra com a imprevisibilidade da “Iniludível” ou da “Indesejada das gentes”, tantas vezes citada por Gil Messias. Há ficção maior do que essa realidade em que se ganha a vida antecipando-se a morte? Gil Messias, na sua sensibilidade de leitor que, repito, esconde um escritor ficcionista, tira daí o título de um belo livro, que, ironicamente, é uma grande celebração da vida e da beleza que a alimenta, traduzida no amor à literatura e à cultura.
Se a contrapelo de Pitágoras e de Plutarco, que valorizavam o silêncio e a escuta, “estamos todos nos transformando em máquinas de falar. [..] no mais das vezes, sem ter nada relevante a dizer” (Falar por falar, p. 145), Gil Messias nos dá a grande lição de que, na sua mansidão e fina gentileza, tem muito de relevante a nos anunciar.