Alguns seminaristas saem do seminário, mas o seminário nunca sai deles. Fica para sempre, como uma tatuagem na alma, irremovível. Assim também com outros lugares, outras experiências, que marcam de tal modo as pessoas, que se misturam de uma vez por todas às respectivas biografias. Como falar, por exemplo, de Antonio Carlos Villaça, o grande escritor e memorialista, sem falar também por sua passagem pelo Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, onde dramaticamente malogrou sua juvenil vocação para o claustro? De Villaça, diz-se, com toda razão, que ele deixou o mosteiro, mas o mosteiro nunca o deixou.
E assim foi, de fato. Para confirmar, basta ler a obra villaciana, toda ela (ou quase) em torno de temas e personagens ligados à questão religiosa e à vida monástica. Com Carlos Heitor Cony, jornalista, cronista e romancista consagrado, pode-se dizer, creio, que ocorreu fenômeno semelhante.
Cony, conhecido por sua ironia afiada e não raro ferina, na infância, no bairro carioca de Vila Isabel, onde cruzou mais de uma vez com o compositor Noel Rosa, foi devotado coroinha, ajudante de missas, rato de sacristia. Segundo o próprio, encantava-se com a beleza da liturgia e com a vida consagrada. Queria ser padre – ou assim pensou. Daí para o seminário foi um pulo, tal como ocorreu com tantos jovens de antigamente, muitos dos quais, inclusive ele, descobririam mais tarde – alguns tarde demais – que aquela não era realmente a vida que queriam para si.
Cony teve a coragem e a honestidade de deixar o seminário a tempo, antes de fazer os votos que o tornariam sacerdote para sempre. Foi uma experiência difícil, como foi a do referido Villaça e a de outros jovens. E não podia ser diferente. Pois, uma vez devolvidos à vida civil, despidos da batina e de perspectivas, era chegada para cada um a hora ingrata de se perguntarem: E agora? Que caminho seguir?
O jornalismo foi a saída para muitos ex-seminaristas. O que se explica pelo fato de que eram, na maioria dos casos, indivíduos bem formados culturalmente, uma tribo que sabia ler e escrever bem, sem falar na facilidade do domínio de outras línguas, principalmente as latinas, filhas do obrigatório latim. Assim foi também com Cony, que, além de jornalista, tornou-se escritor de renome. Em seus inúmeros romances e crônicas, tratou de vários assuntos e temas, mas há um que, pode-se dizer, atravessa sua obra como uma espécie de obsessão ou questão mal resolvida: exatamente o seminário, a vida religiosa, a perda da fé, enfim, o enigma de Deus, sua existência ou inexistência, e por aí vai. Isto é o que acho, o que sinto, como simples leitor, principalmente a partir do livro Informação ao crucificado e do póstumo Paixão segundo Mateus (Editora Nova Fronteira, 2022) agora publicado por sua viúva, após ser descoberto por Marco Lucchesi entre os papéis do escritor entregues à ABL após a sua morte. O tempo de seminário ficou em Cony como o tempo no mosteiro ficou em Villaça, e a obra de ambos, de alguma maneira, revela isso.
Informação ao crucificado é um “relato pungente que culmina com a decisão de um jovem sacerdote de abandonar o Seminário em vésperas da tonsura”. É, no fundo, com as cores da ficção, a história do jovem Cony. A derradeira frase do livro é, não por acaso, “Deus acabou”. É uma frase muito forte, sem dúvida, e que expressa a angústia espiritual daquele que está deixando para trás a transcendência para cair nos braços desconhecidos da imanência desafiadora. A propósito, Alceu Amoroso Lima, o grande crítico e líder católico brasileiro do século XX, escreveu na orelha do livro, com sua autoridade incontroversa: “Acredito que só então, em 1945, ao escrever a última linha deste seu libelo contra si mesmo, é que Deus começou a viver plenamente dentro dele. Só a indiferença é capaz de um deicídio”. E Cony era tudo, menos um indiferente. Se o fosse, não teria escrito um romance sobre sua suposta apostasia. Completa Amoroso Lima: “Mas no fundo, mesmo que o sacerdos in aeternum nunca tenha sido pronunciado sobre sua cabeça nem ungidas suas mãos, a marca do Cristo ficou indelével, qualquer que tenha sido o furor de sua cenografia sexual posterior”. A meu ver, pura verdade.
E a prova é este póstumo Paixão segundo Mateus. Nele, vê-se – ou adivinha-se – uma continuação de Informação ao crucificado: a mesma temática, as mesmas questões, as mesmas angústias relativas ao sacerdócio e à fé. A presença poderosa e determinante do seminário, da vida religiosa, das dúvidas existenciais e do espírito, das agruras cotidianas do sacerdócio vivido mediocremente, “os desassossegos de corpo e de alma” dos personagens que têm muito – como não poderia deixar de ser – do autor também atormentado.
Cony, sabemos, foi um homem extremamente sensual, que viveu intensamente as experiências carnais que a vida lhe proporcionou. Foi muito irônico, quase cético. Seus escritos em jornais e livros mostram isso. Mas mostram também, repito, sua luta com essa fé nunca totalmente renegada, essa fé – ou arremedo de fé – que resistiu nele, apesar de tudo - e dele mesmo.
Não sei se nos seus momentos finais aconteceu a reconciliação com aquele Deus que ele ousadamente declarou extinto no livro antigo. O certo é que aquele Deus não acabou para ele. E continuou a ocupá-lo interiormente, até a obra que agora surge, para deleite de seus leitores fiéis. Sem falar que, uma vez morto, Cony já resolveu definitivamente essas questões angustiantes: repousa eternamente nos braços de Deus ou na paz do Nada, hipóteses que, se não se assemelham, pacificam, de certo modo, os que ainda caminham pelo “vale de lágrimas” deste mundo.