Rua Camilo de Holanda, trecho por trás do Liceu, muito depois da meia noite. Notei, na mesma calçada, a aproximação de alguém. Eu caminhava para a Professor Paredes, bairro da Torre, doido para cair na cama. Ele vinha na direção da Lagoa, ponto por mim ultrapassado minutos antes. “Boa noite” daqui, “boa noite” de lá e o coração se acalmou.
Não era a primeira vez que isso me acontecia. Foi não foi, naquelas madrugadas, a sola dos meus sapatos batiam no piso duro no compasso de outro caminhante. Um em direção ao outro. O silêncio completo, ou o menear de cabeças à guisa de cumprimento, selava quase sempre tais encontros na rua deserta e um tanto escura. Mútua, a cisma aconselhava, quando muito, o “boa noite” em vozes baixas, quase inaudíveis.
Não tenho dúvida de que o medo maior era o meu, um sujeito mal saído da menoridade. Na verdade, em momento nenhum compartilhei esse caminho com alguém que me parecesse mais ou, mesmo, tão novo quanto então eu era.
Sempre imaginei que o destino daquelas poucas pessoas fosse o de algum trabalho no Centro. Fosse na área de estocagem de produtos descarregados, altas horas, para os armazéns do Varadouro, a cozinha de padarias ou hotéis, a jornada em eventual posto de gasolina. Sei lá... Mas acho que seria muito maior a curiosidade deles em relação a mim. “O que faz este pirralho, sozinho, pela madrugada? Não tem pai nem mãe?”.
Respondo, agora, meus companheiros de trilhas e temores. E bendigo o tempo em que podíamos chegar, rotineiramente, sãos e salvos aos nossos destinos. No máximo, assustávamos uns aos outros.
Era em busca da casa dos meus pais que eu apressava os passos. E era, não menos, para o abraço e o sossego daqueles dois. Dona Vininha sempre revoltada com meus atrasos e Seu Juca disposto a acreditar que isso decorria da minha vontade de aprender o exercício do jornalismo com mestres como Gonzaga Rodrigues, Severino Ramos, Zé Souto, Marconi Altamirando e Barreto Neto, para ficarmos nesses cinco.
Revisor não oficializado d’A União e, assim, ainda com salário do contínuo que me tornei no governo de João Agripino, eu bem poderia estar em casa mais cedo desde que tomasse o último ônibus, o que deixava a Praça 1817, às 11 da noite. O Jornal ficava a poucos metros dali, no belo e imponente prédio derrubado, penosamente, para a edificação da Assembleia Legislativa.
Acontece que, findo meu turno de revisão, eu deixava o ambiente da Oficina com seus cheiros de tinta e chumbo derretido a fim de observar, no andar superior, a conversa e a produção de textos daquela gente profissionalmente já consagrada. E, ao dar por mim, estava obrigado a seguir a pé para casa, de quando em quando debaixo de chuva. Tive, dias atrás, o cuidado de medir pelo mapa do Google o percurso desde a Praça até meu endereço e encontrei três quilômetros redondos.
O sacrifício seria recompensado tempo depois quando Souto, dirigindo A União pela primeira vez, levou ao governador Ernani Sátyro a história do contínuo que escrevia um dos dois sueltos do Jornal. O outro estava a cargo de Linduarte Noronha. É quando fui promovido a noticiarista no transcurso da reforma administrativa que então se implantava nos quadros do funcionalismo estadual.
Com a Redação posteriormente transferida para a João da Mata, ali por trás do Palácio dos Despachos, voltei a andar por ruas vazias e mal iluminadas até a Torre, desta vez, porém, na companhia invariável dos colegas Gilvan de Brito e Antonio Hilberto, morador, este último, do bairro de Jaguaribe. Eram companhias de meio percurso, porém indispensáveis.
Mas são os passos pela Camilo de Holanda, na João Pessoa daqueles dias, que me ficaram impressos na memória a ponto de ainda hoje sonhar, repetidamente, com isso. Sonhos agoniados, à procura do carro estacionado não sei onde para desespero de um acompanhante para lá de improvável: um Miguel mais cansado e apreensivo do que seu velho e estúpido avô. Sonhos que agregam, doidamente, a fatos tão passados um neto que há apenas oito anos vim ter.
Antes, meus três filhos, também aflitos, é que estavam comigo nesses quase pesadelos, um por vez, conforme nasciam. Sempre acordei de cada um deles com o coração aos pulos e um sentimento real de culpa. Eu não deveria fazê-los passar pelo que passei. Mesmo, involuntariamente, em sonhos que são apenas meus. Mesmo assim.