Na manhã do dia 15 de fevereiro de 1630, uma grande esquadra holandesa da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais surgia no horiz...

O Tempo dos Flamengos

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Na manhã do dia 15 de fevereiro de 1630, uma grande esquadra holandesa da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais surgia no horizonte do porto do Recife. O grande historiador pernambucano José Antônio Gonsalves de Mello descreveu o episódio nas primeiras páginas do seu livro clássico “Tempo dos Flamengos”, editado, pela primeira vez, em 1947, com um prefácio do escritor Gilberto Freyre:

“Era ‘uma das maiores armadas que já cruzou a equinocial’, dizem os documentos [...] A conquista de Olinda e do Recife pôde ser consumada em poucos dias; a força atacante era bastante forte e militarmente superior”.
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Navios holandeses cercam Recife e Olinda Nicolaes Visscher
A conquista de Olinda e do Recife iniciava o que José Antônio Gonsalves de Mello chamou de o “Tempo dos Flamengos” no Nordeste brasileiro. Mas, o que deu origem ao “Tempo dos Flamengos” remontava a fatos ocorridos meio século antes.

Em 1578, uma expedição militar portuguesa ao Marrocos, comandada pelo rei D. Sebastião, foi fragorosamente derrotada pelos mouros em uma batalha que durou poucas horas e na qual perderam a vida muitos membros da nobreza lusitana e o próprio rei português. O desaparecimento de D. Sebastião provocou uma grave crise sucessória em Portugal. O rei, de 24 anos, não tinha descendentes diretos e, até aquele momento, havia rejeitado as confabulações e negociações que visavam ao seu matrimônio, tratativas que eram comuns, na época, entre as casas reais.

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Gravura da batalha Alcácer-Quibir: o exército português (à esquerda) enfrenta os mouros
Miguel L. Andrada ▪ 1629 ▪ Museu do Forte da Ponta da Bandeira ▪ Portugal / Wikipedia
Com a vacância do trono lusitano, assumiu a Coroa o cardeal D. Henrique, tio-avô de D. Sebastião que, dois anos depois, viria, também, a falecer, agravando, ainda mais, a situação da sucessão dinástica no reino português. Dentre aqueles que se julgavam com direitos sucessórios em Portugal, estava o monarca espanhol Filipe II, que era tio de D. Sebastião. Aproveitando-se do extraordinário poder militar e da grande influência econômica que possuía o império castelhano naqueles anos, Filipe II assumiu o trono lusitano, adotando para os portugueses o nome de Filipe I de Portugal. A posse do rei espanhol na Coroa de Portugal fez com que todo o império português ficasse subordinado à Coroa espanhola,
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Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal) ▪ S. Anguissola, 1573 ▪ Museu do Prado, Madri
passando as duas monarquias da Península Ibérica a ter um único rei, uma situação que perdurou por sessenta anos (1580-1640), período que é comumente chamado na historiografia como o tempo da União Ibérica.

Com a junção dos reinos castelhano e português, Portugal — que, até então, se mantinha afastado das refregas que aconteciam entre alguns países na Europa — herdava os litígios e as contendas em que os espanhóis estavam envolvidos, inclusive com os Países Baixos, que eram tradicionais parceiros comerciais dos lusitanos. Ao tempo em que se iniciara a colonização das terras do Brasil, nas primeiras décadas do século 16, os holandeses tinham estreitos laços mercantis com os portugueses. A rigor, se referir a holandeses é uma redução que comumente se faz, porque, na realidade, as transações de comércio de Portugal se davam com as Províncias Unidas que formavam os Países Baixos, uma das quais era a Holanda.

Em 1568, os Países Baixos, que, na época, pertenciam aos imensos domínios da monarquia castelhana, haviam iniciado um período de guerras contra o jugo espanhol que durou cerca de 80 anos - com uma trégua de doze anos (1609-1621) - e que, ao final do século 16, resultou na independência de sete províncias neerlandesas. Para o historiador Evaldo Cabral de Mello, “quando, no decênio final do século XVI,
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A Holanda Brasileira ▪ área do Nordeste ocupada pelos holandesesJJohnson
os Países Baixos consolidaram militarmente na Europa sua independência da Espanha, a ofensiva batava desdobrou-se em ofensiva ultramarina visando à destruição das bases coloniais da riqueza e do poderio ibéricos”. Para viabilizar essa investida contra as possessões espanholas e portuguesas os neerlandeses criaram companhias constituídas por acionistas que, em regime de monopólio e por concessão das Províncias Unidas, se encarregariam de conquistar e explorar comercialmente as colônias ibéricas, o que ocorreu, inicialmente, na Ásia e depois na costa ocidental da África e nas Américas, ocasião em que foram direcionadas as investidas contra o Nordeste do Brasil.

Conforme escreveu Evaldo Cabral de Mello, um dos mais importantes estudiosos do período no qual, no século 17, os neerlandeses permaneceram, por cerca de duas décadas, no Nordeste brasileiro, a região fora escolhida como o alvo das investidas dos batavos por “uma variedade de motivos”. Dentre as principais motivações da cobiça neerlandesa pela área o historiador pernambucano apresenta a localização das principais povoações brasileiras, que ficavam no litoral, praticamente indefesas, vulneráveis a ataques, e os lucros que poderiam advir com a exploração direta do negócio do açúcar.

A escolha do Nordeste do Brasil pelos holandeses para a base das suas operações nas Américas decorria, também, das relações mercantis, que comerciantes neerlandeses mantinham com a agroindústria do açúcar que, então, florescia em capitanias nordestinas. Para Evaldo Cabral de Mello, os mercadores judeus que deixaram
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Durante o domínio holandês, Recife recebeu o nome de Mauritsstad, capital da Holanda Brasileira ▪ Mapa: J. Vingboons, 1640s
a península ibérica fugindo das perseguições da Inquisição e que haviam se estabelecido nos Países Baixos estavam envolvidos, desde o início da colonização do Nordeste, “com o financiamento e a operação da agroindústria açucareira e com a comercialização do produto nos mercados europeus [...] Nas Províncias Unidas conhecia-se mesmo [...] a produção de açúcar branco e retame de cada uma das fábricas existentes em Pernambuco, Itamaracá e na Paraíba [...] o açúcar brasileiro passara a representar não um negócio propriamente holandês, mas uma atividade eminentemente controlada pela comunidade sefardita de origem portuguesa estabelecida em Amsterdã”. Os judeus sefarditas eram aqueles originários de Sefarad que, na tradição hebraica, era a Península Ibérica.

O envolvimento dos holandeses com o negócio do açúcar nordestino, segundo Evaldo Cabral de Mello, proporcionou aos batavos um amplo conhecimento sobre a região:

“Graças à regularidade e frequência desses contatos, dispunha-se na Holanda de um excelente conhecimento não só das condições econômicas e sociais, mas também do litoral do Nordeste, dos seus portos e até do traçado urbano de Olinda, conhecimento indispensável à preparação e à execução dos ataques, primeiro contra a Bahia e depois contra Pernambuco”.
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Invasão holandesa ao Rio Grande do Norte ▪ Natal passou a ser denominada de Nieuw-Amsterdam (Nova Amsterdã)
Fonte: Dutch School / Wikimedia
Criada a empresa que atuaria nas Américas, pouco tempo depois circulava por Amsterdã um folheto com o título “Motivo por que a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao rei da Espanha a terra do Brasil”. O opúsculo alardeava as vantagens para os neerlandeses da expedição ao Nordeste brasileiro:

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“Embora a terra do Brasil seja maior que toda a Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Escócia, Irlanda e os dezessete Países Baixos juntos [...] contudo há apenas dois lugares mais importantes do mesmo país, isto é, Bahia e Pernambuco [...] Estes dois lugares, isto é, a Bahia e Pernambuco (nos quais consiste este grande país, conforme já disse) não dispõem de forças consideráveis ou fortalezas, de modo que, com a graça de Deus, os mesmos poderão ser e serão ocupados”.

E assim ocorreu. Em maio de 1624, uma grande armada, arregimentada pela Companhia das Índias Ocidentais, atacava Salvador, a sede do Governo-geral do Brasil e capital da América portuguesa. Impotente para reagir à invasão, a população abandonou a cidade e se refugiou na região do Recôncavo de onde, por meio de guerrilhas, manteve os batavos circunscritos aos limites da cidade de Salvador. Mas, durou pouco tempo o domínio dos flamengos sobre a Bahia. No ano seguinte, uma grande esquadra luso-castelhana reconquistava Salvador.

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Invasão holandesa à cidade de Salvador, em 1624Dutch School / Wikimedia
O insucesso na Bahia não desanimou os neerlandeses que voltaram suas vistas para a capitania de Pernambuco e para as capitanias vizinhas de Itamaracá, da Paraíba e do Rio Grande do Norte que, segundo Evaldo Cabral de Mello, “em termos do mercado mundial, representavam então a mais importante área de produção açucareira com volume que atingia 659 mil toneladas de açúcar ou 33 mil caixas”. A tomada pelos holandeses de Olinda e Recife, em fevereiro de 1630, iniciou um período de 24 anos que a historiografia denomina como os anos do “Brasil Holandês” ou o “Tempo dos Flamengos”, como foi designado por José Antônio Gonsalves de Mello, um período no qual os batavos chegaram a dominar o Nordeste brasileiro, em determinado momento, no sentido norte até o Maranhão e no rumo sul até Sergipe.

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  1. Parabéns por mais um texto, que traz questões relevantes sobre um importante período de formação do nordeste brasileiro.

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  2. JOSE MARIO ESPINOLA4/9/22 22:31

    Mais uma aula e história, num texto muito bem pesquisado e escrito.
    Muito bom, Flávio!

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