A transmigração da família real para o Brasil apareceu no livro do admissão, antiga ponte do primário para o ginasial. A Independência viera antes, num livrinho mimoso, capa dura, trazido para a nossa classe pela menina Lucy, de olhos lindos que nunca vi iguais até hoje, depois de uma longa vida encantado com muitos milhares de outros olhos, também lindos, mas nunca indescritíveis como os da menina Lucy.
Mas estamos de intenção noutra história de gênero sisudo, a da fuga tumultuada do rei e de toda sua Corte das tropas de Napoleão, contada noutro livro, o do admissão, do qual me ficou para a vida inteira, como a cicatriz de ferida que escondo na perna, a palavra “transmigração”. No espírito do menino, a fuga, o vexame, a carreira do rei impressionaram menos, muito menos, do que a surpresa, o pasmo com a tal ‘transmigração’.
A estranha novidade da palavra me deixou atento, compenetrado, ao passo que a carreira do gordo rei, olhando para trás, insinuou à criança coisa de achar graça.
Já no livrinho trazido por Lucy foi bem diferente. Antes do texto, a foto, o documento, ou seja, as cenas épicas acesas de luz e força a flagrarem a decisão do príncipe com o seu grito, espada em riste, a divisa que fazia da colônia a grande nação.
“Independência ou morte” está na legenda que o pintor genial de Areia viria compor como fotógrafo deste primeiro grande momento do país de gente nascida livre e tornada escrava pela civilização. O grito guerreiro, glosado até como precipitação ou fruto de circunstância onde não faltava o anedótico, vem ganhar cores de autêntico, legítimo, tal como repercutiu entre os que lideravam as hostes libertárias, como Bonifácio. Uma imagem e uma divisa épicas que se restringiam aos partidários e guerreiros na luta sangrenta e vasta pela independência.
“O grito reboou por todas a províncias”, assinala Rocha Pombo, o autor daquele mimo de livro. “Reboava” disforme, como se o resultado não nos obrigasse a levar a sério a conquista da própria pátria. Vezo que repercute até hoje, quando escrevendo para ajudar o povo na leitura, um divulgador dos mais lidos da nossa história, dosa a pílula com o detalhe jocoso: “No dia 7 de setembro, sofrendo com a diarreia, o príncipe recebeu as cartas às margens do Ipiranga e concluiu que chegou a hora de romper com a Metrópole. No dia seguinte, já recuperado do desarranjo e após uma noite tórrida com a nova amante, iniciou a viagem de retorno ao Rio”.
O Grito da Independência vem se efetivar em sua imagem épica, sagrada, cinquenta e cinco anos depois de bradado, a partir da tela exposta em Bruxelas para D. Pedro II, D. Leopoldina, e, entre os convidados, a Rainha Vitória. Se Pedro Américo não pintou Areia, valeu-se do seu colorido tropical, do clarão de seu sol, para fixar na consciência cívica do Brasil o seu momento mais alto e - para todos e por todos nós - o mais duradouro.