O mundo em um “livrinho”   Adentro, com pés trocados, este novo livro de José Augusto Carvalho. Faço isto, ao molde dos indíg...

José Augusto Carvalho, o mestre dos subversivos

O mundo em um “livrinho”  

Adentro, com pés trocados, este novo livro de José Augusto Carvalho. Faço isto, ao molde dos indígenas da suposta “cipango”, que trocaram o sentido dos seus calçados, para confundir os portugueses que percorreram o Brasil em busca da prata andina, pelo o famoso caminho das antas (Peabirú). Mas, entrar em um livro de linguística com os “pés trocados”, é algo que cabe a um subversivo, a um poeta, algo sempre repisado pelo professor José Augusto Carvalho, em suas conversas com os poetas que o circundaram ao longo da vida.

Boa parte dos poetas capixabas que mais admiro tiveram o privilégio de ter José Augusto Carvalho como principal referência nas últimas 5 décadas. Basta lembrar de Miguel Marvilla, Oscar Gama Filho, Marcos Tavares, Jô Drumond e WJ Solha, dentre muitos outros.

A ideia que permeia este “livrinho”, reproduzo aqui a forma como José Augusto Carvalho se refere aos seus livros, é a busca de uma forma de, mantendo-se fiel às normas cultas, transmitir, com a leveza e a experiência que advém do tempo e da reflexão inteligente, o seu imenso conhecimento da língua portuguesa.

Neste livro de José Augusto de Carvalho, os leitores não afeitos as teorias linguísticas, sequer tem a possibilidade de encontrar textos leves, hilários e, mesmo que não queiram, aprender a forma mais apropriada de usar a palavra “sequer”. Curiosos? Leiam o livro e entenderão o que estou falando.

Até quando o professor nos apresenta “frases lapidares” ele exerce o papel de um educador. Mostra-nos uma visão de mundo que, nem mesmo um pessimista entusiasmado, citando Cioran, deixaria de silenciar-se frente a idiotização de nossa sociedade. A “gruidificação” dos nossos jovens e adoção da única figura de linguagem possível na pós-modernidade: a onomatopeia. Isso porque:

No Brasil tem gente que não fala português porque é mudo, mas há gente que não falam português porque falam inglês ou francês, e não porque são mudos também.

Afinal

O principal matrimônio de um país é a educação.

É verdade... Como nos diz um outro exemplo de redação incluído neste “livrinho”:

O Brasil está à beira do abismo, por isso precisa dar um passo à frente.

E quando trata dos “Erros generalizados” ele nos testa: como se escreve o nome daquele queijo fundamental na pizza?.... Fiz um teste: perguntei as pessoas de minha família e algumas outras e pronto: todas concordaram com a utilização de dois “ss” em muçarela…

Dollar Gill
Viremos a página.

A memória identitária é algo que fragiliza o capixaba. Cansado de ser um entreposto, um trecho da BR que comunica os estados do sudeste com as águas quentes do nordeste, foi tratada com propriedade por José Augusto.

E ele nos joga um balde de água fria…

Agora professor, o nosso “pocar”... Poderia ter pegado mais leve... Mas fazer o quê... Ele tinha que dizer a verdade.

E já que “o pior das coisas difíceis é que elas não são fáceis”, passemos para a linguística.

Vejam a delicadeza como o professor explica a frase icônica: língua é forma e não substância. Um dos pontos altos do livro. O professor entrega a massinha (substância) para o leitor, para ensiná-lo que ao moldá-la ele aprende a conhecer melhor como a nossa língua tomou forma ao longo dos séculos... E como este processo é dinâmico e sujeito ao regionalismo.

Não é uma coincidência, insisto, que José Augusto Carvalho, embora famoso por sua rigidez como professor, tenha fomentado a subversão no submundo dos poetas. Somente alguém que conheça as entranhas de nossa língua, seria capaz de reconhecer a transcendência relativa na escrita dos poetas, e ser permissivo, complacente e, sobretudo, um mestre, para tantos poetas que, ao longo dos anos, o apresentaram os seus poemas.

E eis uma ideia fundamental na obra do professor José Augusto de Carvalho:

A língua portuguesa não se cristalizou pelo uso que dela fizeram os grandes escritores (...) Os gramáticos das línguas românicas seguiram esse método, esquecidos de que tratavam de uma língua viva, e usaram exemplos de escritores como abono de suas regras gramaticais, sem se darem conta do fato de que ao escritor compete quebrar ou subverter as normas linguísticas, e não observá-las (...) o linguajar denotativo dos textos jurídicos, foram as primeiras cartilhas de alfabetização na nossa língua. Foi, portanto, a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta.

Mas o professor não deixa sem um “corretivo” os juristas e seus neologismos e idiossincrasias gramaticais.

É verdade professor, a linguística é uma ciência, e como toda ciência é uma fonte divina de verdades fluidas e dúvidas eternas. E você está certo ao citar Charles Bukowski:

O problema com o mundo é que as pessoas inteligentes são cheias de dúvidas, enquanto os imbecis são cheios de certezas.

E quanta convicção brota da boca dos imbecis…

As muitas vozes verbais nos chegam com exemplos, minuciosamente preparados, o que me faz lembrar outro livro de José Augusto Carvalho, o Manual de pontuação, uma joia que todos deveriam ler.

Para nós, os subversivos, percorrer os textos nos quais José Augusto Carvalho contra-argumenta citações e comentários de outros linguistas é um “pisar em terras nunca antes percorridas”. É um retomar o Peabiru acima citado, agora já mais seguros e confiantes de nossos passos rumo a Potosi (a mítica mina de prata do império Inca).

Onde saberíamos sobre o “sumiço dos ditongos”? Que o uso da “língua”, digo a que temos em nossa boca, poderia assumir o papel de supressão de letras e ditongos na língua – agora a falada – portuguesa. Observem o exemplo:

Monotongação é a transformação de um ditongo em vogal, como na palavra bença, oriunda de bênção (além da monotongação, neste caso, houve também desnasalização, fenômeno semelhante à alteração de homem para home).

E vejam o grande mérito de José Augusto Carvalho, embora ele reconheça o padrão anacrônico, por vezes reacionário de grande parte das gramáticas existente, ele faz um contraponto dizendo que :

Quem pretende substituir a norma culta tradicional pela norma brasileira é que está confundindo valores (padrões ideais de linguagem com padrões reais de linguagem).

Ora, e o que faz o professor, ele cede e mantêm-se mais um a adotar uma “fórmula” ao longo de seus livros e sua gramática? Não. Como observador hodierno, ele percebe lacunas, reentrâncias, arestas demais nas gramáticas, nos textos, nos livros. E nos presenteia com livros, livrinhos como ele costuma dizer, como este.

E ele recorre ao argumento maior, no meu entendimento, de sua obra. O que:

(...) há de pior nas gramáticas tradicionais é a citação de escritores como abono de regras. A um escritor compete subverter a sintaxe, escrever diferentemente dos outros e não como os outros. Não foi a linguagem dos escritores que sedimentou a norma culta, mas a linguagem jurídica e, depois, a linguagem dos cronistas.

E a origem dos nomes dados aos dias da semana... Tá bom. Todos sabemos. Será? O leitor pode dizer que basta buscar no Google... Mas e a didática?...
Garanto, caro leitor, que será difícil, com tão poucas palavras, encontrar um esclarecimento tão completo, como nos oferta o professor em uma entrevista aqui publicada.

Falemos de curiosidades... Saber sobre a origem do “Parabéns para você...”; qual o erro na frase “então a mãe é seu?”. Saber que a filosofia tem um papel na classificação dos substantivos em abstratos e concretos, e isso usando o nome de Deus, mas sem ser em vão…

E o que podemos dizer dos diversos níveis de linguagem exemplificados mostrando como um mesmo tema seria abordado por indivíduos com diferentes níveis de escolaridade? É professor, você nos surpreende...

Diz-nos José Augusto Carvalho: A língua é a gramática e não o dicionário. E qual o artifício didático que o professor lançou mão para explicar isso aos seus alunos na pós-gradução da UFES e que nos oferta neste “livrinho”? Um soneto.

Língua e linguística é o nome apropriado para este livro, nele é possível sentir a facilidade com a qual o linguista, com todo seu rigor formal e conhecimento, transpõem a ponte que o liga a nós, os subversivos, seus leitores. E, desta forma, nos faz aprender com leveza.

José Augusto Carvalho sabe a dose certa entre uma aula-texto formal mesclada com intervalos plenos de guloseimas e curiosidades.

Encerro já, mas não sem dizer algo sobre uma confissão feita pelo professor:

Privilegiei conhecimentos superados e deixei de considerar assuntos linguísticos diretamente ligados ao ensino da língua portuguesa.

Sabe professor, torço para que as novas gerações de professores de português não se percam no território colorido e ilusório das telas multimidiáticas, e que saibam mesclar o poder da imagem com o prazer da sabedoria contida em livros como este. E que também se apaixonem como você, por sua língua, seus sons, seus tons, seus vocábulos, sua história e, por que não, pelo seu sabor (já que aprendi aqui que sabor e saber tem a mesma origem no latim...)


Jorge Elias Neto – médico e poeta subversivo (será um pleonasmo? Assim espero...)

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também