Em meados de junho de 1625, uma grande armada holandesa chegava ao litoral da Paraíba retornando da Bahia. A esquadra fora enviada de Amsterdã para Salvador pelas Províncias Unidas dos Países Baixos para reforçar as forças neerlandesas que haviam conquistado, no ano anterior, a sede do Governo-geral do Brasil. Mas, pouco tempo antes da chegada dos holandeses a Salvador, a cidade fora reconquistada por uma armada luso-castelhana comandada pelo general espanhol Fradique de Toledo. Naquele momento, o Reino português estava subordinado à Coroa espanhola, era o tempo que é comumente chamado de União Ibérica, o período de sessenta anos (1580—1640) no qual três monarcas castelhanos, de nomes Felipe II, III e IV, ocuparam o trono de Portugal. O historiador Evaldo Cabral de Mello escreveu sobre o que motivou a vinda da armada batava de Salvador para a Paraíba:
“Demasiado tarde (fins de maio), despontaram no horizonte os reforços enviados das Províncias Unidas, sob as ordens de Boudewijn Hendrickszoon, que prudentemente desistiu de enfrentar a armada luso-espanhola, singrando para o Caribe e ancorando, a caminho, na baía da Traição (Paraíba).
O período em que a armada holandesa que retornara da Bahia permaneceu na Paraíba foi registrado nos escritos de Joannes de Laet, geógrafo e um dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais, empresa formada por acionistas e que fora constituída para, em regime de monopólio outorgado pelas Províncias Unidas, conquistar e explorar economicamente as possessões espanholas e portuguesas localizadas na costa ocidental da África e nas Américas.
No dia 18 de junho, conforme a narrativa de Joannes de Laet, a esquadra batava surgiu “uma légua a barravento do rio Parahyba” em busca de aguada, já que “diariamente morria muita gente e tal era o número de doentes em alguns navios, que não se podiam marear as velas”. No dia seguinte, segundo Laet, os navios estavam diante da foz do rio Paraíba e foi enviada uma pequena embarcação para sondar a profundidade do rio, que constatou que a barra não permitia a entrada de navios de grande porte. Foi nessa ocasião que, na descrição do geógrafo holandês:
“o forte de Cabo Delo atirou contra os nossos navios, mas os seus tiros não acertaram [...] O general entendendo que com navios tão pesados não se podia deter sobre a costa a sotavento, determinou seguir com elles para a bahia da Traição, que fica cinco leguas ao norte da Parahyba”.
Seguindo o relato do escritor neerlandês, toma-se conhecimento de que, na época, havia na Baía da Traição “um pequeno povoado onde tinham os Portuguezes uma capella”. A povoação estava deserta porque os moradores haviam fugido quando da chegada da esquadra holandesa, “mas os indígenas, que se deixaram ficar, trataram mui amigavelmente” os batavos e, conforme Laet, os nativos “que moravam nas terras adjacentes, vieram ter com os nossos, e lhes offereceram seus serviços contra os Portuguezes, cujo jugo suportavam mal soffridos”.Dias depois, um capitão holandês fez “uma entrada no sertão com sessenta soldados e alguns marinheiros, em procura de refrescos para os doentes, sendo-lhe muito encommendado que não offendesse os indigenas, nossos amigos”. No início de julho, “cento e cincoenta soldados [...] e igual número de marinheiros” em “dez bateis e esquifes, acompanhados de cincoenta indigenas armados de arcos e setas” subiram o rio Mamanguape em uma expedição. Os portugueses, alertados da presença dos neerlandeses na Baía da Traição, reuniram forças de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande para enfrentar os batavos. Conforme o escrito de Laet, os holandeses “haviam encontrado junto do rio Mamanguape trez bandeiras de Portuguezes”.
Embora Joannes de Laet tenha registrado a supremacia dos seus conterrâneos no confronto com os portugueses: “tiveram os nossos trez mortos e alguns feridos, mas levaram a melhor e puzeram os Portuguezes em fugida”, foi vigorosa a resistência das forças locais, a se concluir pelo relato do próprio Laet: “e não acudira o vice-almirante, a nossa gente houvera recebido grande damno”. Na refrega, os portugueses chegaram a capturar alguns batavos, como foi o caso de Assuerus Corneliszoon que, levado aprisionado para a cidade Filipeia, escreveu, anos depois, uma pequena descrição sobre a capitania da Paraíba.
Segundo Joannes de Laet, os flamengos tornaram a subir, por mais duas vezes, o rio Mamanguape por “algumas sete ou oito léguas” sem encontrar portugueses. Depois fizeram uma entrada no caminho do Rio Grande se deparando com um engenho que fora abandonado onde encontraram “algumas trezentas caixas de assucar, e mui numeroso gado”. Pelas dificuldades do caminho para a Baía da Traição, nada pode ser transportado e voltaram “sem trazer cousa alguma, salvo os indígenas que trouxeram limões para os doentes”.
Ainda no relato de Laet, como o comandante da armada holandesa não tinha ordem expressa da direção da Companhia das Índias Ocidentais para tentar “alguma interpresa contra o inimigo [...] nem, quando a tivesse, tinha escolhido para começar um lugar muito accommodado, (não se sabia então quaes as vantagens e capacidade do lugar)” foi decidido a partida para a Holanda: “reembarcada a nossa gente, sahiram todos os navios na entrada do mez de Agosto”.
Embora a permanência dos flamengos na Baía da Traição tenha sido de aproximadamente quarenta dias, esse curto período foi suficiente para que fosse firmado certo entendimento entre os batavos e os nativos da nação Potiguara que viviam na região, configurando relações de amizade que, para Joannes de Laet, os holandeses deveriam “reservar, para tirar proveito dellas em outra occasião”.
A nação Potiguara, segundo um texto jesuíta contemporâneo do início da colonização das terras da Paraíba, habitava, desde tempos imemoriais, as terras nas proximidades do rio Paraíba e estendia o seu território para o norte até o Maranhão. Conforme o mesmo relato jesuíta, os Potiguara eram o “gentio mais guerreiro do Brasil”, o que pode ser constatado pelo demorado enfrentamento que eles deram aos portugueses que tentavam ocupar as terras onde eles viviam.
Alguns relatos históricos, como foi o caso do de Frei Vicente do Salvador, registram que, no ano de 1599 (quinze anos após o início da colonização da Paraíba) os Potiguara firmaram uma paz com os portugueses, em ato realizado na cidade Filipeia e na presença de autoridades da Capitania. Mas, o que se constata em documentos emitidos duas décadas depois daquela conciliação, os Potiguara, pelo menos os que viviam na região da serra da Copaoba, continuaram a assediar as instalações dos portugueses. E a breve presença dos holandeses na Baía da Traição, em 1625, comprova que os Potiguara não se encontravam acomodados pois, conforme escreveu o próprio Frei Vicente do Salvador “não só o gentio da beira-mar se rebelou nesta ocasião dos holandeses contra os portugueses, mas também os do sertão e serra de Copaoba”.
Pela narrativa de Joannes de Laet, os Potiguara que viviam na região ficaram apreensivos quando houve a decisão do comandante da armada holandesa em deixar a Baía da Traição:
“por outro lado abandonar os indigenas, que se deram muita pressa em se lançar com elle, e por fazerem conta que as nossas aqui permaneceriam, já haviam praticado tantas hostilidades contra os portuguezes era duro e estranhavel [...] Os indigenas, sabendo que os nossos estavam deliberados a partir, ficaram também mui perplexos, pois previam qual a sorte que os aguardava, por ser certissimo que os portuguezes os haviam de castigar e tomar emenda delles; muitos trabalharam com o nossos que os levassem, mas, como não havia para isso bastantes provisões, sómente poucos foram acceitos, e força foi que a mór parte delles se lançasse a monte”
Com a partida dos holandeses, os portugueses organizaram uma expedição de perseguição aos Potiguara que resultou em um grande massacre de indígenas. Muitos Potiguara foram, também, escravizados e somente libertados dez anos depois, quando da conquista da Paraíba pelos holandeses, conforme se verifica no relato de Servaes Carpentier que foi o primeiro governante batavo na Capitania da Paraíba: “os que, aprisionados na baía da Traição por se terem aliado ao general Boudewijn Hendricksz, foram escravizados, mas os nossos os declararam livres por público pregão”.
O episódio do massacre praticado pelos portugueses na Baía da Traição acabou aproximando dos flamengos uma parcela da nação Potiguara. Alguns indígenas que conseguiram embarcar na armada neerlandesa permaneceram por certo tempo na Holanda, como foi o caso de Pedro Poti, que lá ficou por cinco anos, onde foi educado e adotou a religião protestante. Poti retornaria, depois, ao Brasil para combater ao lado dos batavos nas guerras que foram travadas no Nordeste brasileiro. Em carta a seu parente Felipe Camarão, que se alinhara com os portugueses, Poti explicava a sua escolha em ficar do lado dos holandeses:
“em todo paiz se encontram os nossos escravizados pelos perversos Portuguezes, e muitos ainda o estariam, se eu os não houvesse libertado. Os ultrajes que nos têm feito, mais do que aos negros, e a carnificina dos da nossa raça, executada por elles, na bahia da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória”