“Ce chien est à moi”, disaient ces pauvres enfants. “C’est là ma place au soleil”, Voilà le commencement et l’image de l’usurpation de toute la terre – Blaise Pascal.
Outro dia me encontrei numa praia de Pacífica recolhendo conchas, pedras miúdas, pedacinhos de corais. Enchia os bolsos, coletando fragmentos do mundo para pôr, secos e limpos, na janela que se abre para os verdes de um jardim que me acostumei a chamar de meu. E nada como o mar não cultivado para me pôr em estado de filosofia, descobrindo razões para pensar nas tolices despercebidas do meu cotidiano.
Repentinamente, havia um peso nos meus bolsos. Um ruído se insinuava no lóbulo da orelha. Um murmúrio (ou seria um zumbido?) insistente, que combinava com a neblina grossa cobrindo o horizonte. Se a memória tem voz, era ela que eu ouvia, quase indistinta, sussurrando questões incômodas, nascidas na velhice dos séculos. E me dei conta que essa voz ancestral carregava as palavras de Pascal, o matemático:
“Este cachorro é meu”, diziam aquelas pobres crianças. “Este é o meu lugar ao sol”, eis o princípio e a imagem da usurpação de toda a terra.“
O velho Pascal tem razão ao falar sobre propriedade e o desejo quase libidinoso de ter, acumular, trazer para casa coisas que chamamos nossas – mas não o são, de fato.
A rigor, o que temos, nesta vida, que podemos dizer que seja realmente nosso? Nem mesmo o frágil corpo – pensei, lembrando que entre poeira, dormindo dentro de mil caixas e abarrotando prateleiras, gavetas e cômodos, há tantas coisas se empilhando. Inúteis, esquecidas…
Olhei para a conchinha de um molusco que eu trazia nas mãos e pensei na voracidade humana pela posse de coisas, sólidas umas, imateriais outras. Saímos pelo mundo recolhendo, escravizando, capturando, domesticando. Ousamos dizer que os animais, as plantas e as pedras são nossos. Vastos continentes, outros povos, riquezas da terra alheia – tudo “descoberto”, tomado, invadido, carregado. Usurpação é velha sereia. Há quem acredite ser dono de outros seres humanos – e tal ideia excêntrica seria um tanto risível se não fosse dolorosamente trágica.
A voz de Pascal zumbia, implacável: começa o vício na infância, com o pronome meu, que se apossa de cão, gato e peixinho de aquário, e se estende vida afora, na qual cada um marca cuidadosamente seu lugar ao sol. “É que a gente quer reter uns retalhos da beleza”, argumentei, sem muita convicção, me perguntando como resistir a um coralzinho rosado ou a uma alga que parecia cauda de sereia. Mas apenas suspirei, pois entendo bem como a propriedade das coisas do mundo é ordenadora na nossa sociedade; engloba desde essas coisas simples até decisões históricas que após alguns séculos despertam vergonha, protesto e rancor. Está mesmo em toda parte.
Enraizado em nós, bem sei, o desejo de posse pode gerar tormento individual e coletivo. Sua compreensão como um dos motores do progresso gera um debate ácido que em nada lhe diminui a popularidade. Ali está ele, na gana que impulsionou as caravelas, mas também visível na minha vontade de recolher pedras, plantas e flores, e nas pobres crianças de Pascal, que acreditam possuir um cão apesar de sua miséria. Somos todos tão iguais, tão previsíveis, amarrados a um apego que em casos extremos consome bom senso, sossego e dignidade. As diferenças estão na intensidade da vontade, na motivação sob a qual nos escondemos e na natureza do objeto de desejo.
A Terra ri de nossa ingenuidade e roga ao tempo que nos prove (às vezes com dor) que essa posse transitória é mais um dos nossos brinquedos de adultos, a satisfação de uma necessidade que julgamos essencial, mas é fruto tão-somente de uma apropriação abençoada pelas regras sociais. O riso seco da Terra tem razão de ser: sabe que a ânsia de domínio é uma forma de miséria e escravidão. Pequena armadilha embutida para apanhar incautos, pensei olhando as montanhas cobertas de flores que eu adoraria possuir.
O mesmo Pascal – meditando sobre esse tema, oferece pistas sobre o antídoto. Detecta que o homem caminha pela vida alheio à verdade sobre a usurpação. O sentimento de posse foi introduzido sem razão em nós e no correr do tempo tornou-se razoável. Autêntico e eterno desejo, só termina quando o homem se torna consciente do processo.
Lembro das minhas pedras na janela, de flores ressecadas em livros. Vai dar um enorme trabalho para os meus filhos jogarem fora tudo isso. A morte revestirá de desimportância o que para mim é recordação cálida de momentos que desejo eternizar.
Quem haverá de saber que a pedra amarela veio das pirâmides? E a pedra cinza (a polida) do Ganges? A pedra escura veio do Oiapoque, a clara do Mar da Galileia. De vez em quando abro minhas cadernetas de escritora e caem folhas de bordo, flores da California e de Brasília, folhas do túmulo de Van Gogh. Mas neste momento – neste exato momento – já não vejo sentido algum em tê-las tirado de seu lugar.
Delicadamente, devolvo o coralzinho rosado à areia. Prometo-me, solenemente, nada mais recolher. Cada coisa ficará no seu lugar nativo. E meu quarto cada vez mais vazio, até que ele caiba, inteirinho, na mala modesta que contém apenas o essencial.
Eu, o espírito cético pousado no meu ombro e todas as coisas da Terra aguardamos os próximos capítulos. O sol de verão dissipou a neblina. Surge um arco-íris de flores nas árvores e nos arbustos que circundam o mar e isso nos dá esperança de que o futuro seja apenas de contemplação e não de coleta. Queremos dizer um amém coletivo, mas é muito cedo para tal. Hábito consolidado é cabo de aço, embora tenha nascido fino como teia de aranha.
P.S. Eu poderia dizer, sim, que Pascal era matemático, filósofo, teólogo, escritor, físico e inventor – como fazem a Wikipedia e a Britânica – mas acho que “matemático” é o rótulo mais bonito que já se inventou e adiciona valor único ao currículo. A Matemática parece ter a chave para segredos imensos. Quando eu morrer, escrevam na minha lápide: “Amava ser escritora, mas queria ser também matemática”.