Num espaço de tempo compreendido entre as 3 primeiras décadas do século XX, Ernestina faria várias viagens à Europa pelo Lhoyd Brasileiro, valendo-se do então mais usual trajeto, que unia os portos de Recife e La Rochelle, na França. De lá ela traria não somente uma louca paixão por automóveis que já começavam a dividir as ruas de Paris com seus antecessores bondes e charretes, mas também as últimas modas do vestir, introduzindo pela primeira vez aos ouvidos nativos da Serra do Teixeira a palavra soutien-gorge – sustento de pescoço (para seios) –, simplificada depois para soutien, e transcrita em português com direito a um tio sobre a letra a.
O soutien viera substituir o corpete, uma atualização de época para o nome califon, por sua vez, uma peça do vestuário íntimo feminino, na verdade uma espécie de guarda-peito usado como peça superior e complementar do antigo espartilho da "Belle Époque", de maneira que Ernestina, como a primeira professora local da Serra de Teixeira, por experiência e conhecimentos que extrapolavam o delimite aldeão, preenchia além do contento os pré-requisitos exigidos à época pelo Estado brasileiro para contratar professoras, numa iniciativa pioneira em nossa historia republicana, pelo empenho governamental em levar escolas públicas aos mais distantes rincões do país.
Na Paraíba – um dos 5 mais antigos estados da federação, com passado envolvido no processo da colonização –, esse novo professorado feminino com contrato fixo e sujeito às novíssimas leis trabalhistas, vinha substituir a antiga figura do Preceptor ambulante, depois das tímidas, raras tão quanto incipientes tentativas privadas de infundir alguma escolaridade a aldeões e moradores de sítios. O Preceptor foi uma espécie de andarilho dos sertões – com suas aparições irregulares e inopinadas –, surgido naqueles socavões de serras como alguém que mais parecia provir de outro mundo. Trazia o objetivo de minorar nos sítios e casas grandes da região o alto índice de analfabetismo, porém com uma atividade solitária e tão nele concentrada, que lhe exigia trazer sempre a tiracolo um certo ecumenismo no malote dos saberes.
Mas naqueles começos do século XX, a grande novidade mesmo era a nova profissão feminina abrindo uma oportunidade de ouro às mulheres, fadadas até então às canseiras da vida doméstica – educadas quase que exclusivamente para casamento e reprodução, dentro de uma patriarcalismo embrutecido pela velha estrutura sócio-política coronelista, uma herdeira direta do bandeirantismo –, e, por incrível que hoje pode parecer aos mais jovens, essa chance surfava na versão faccio do novo nacionalismo brasileiro, uma súbita irrupção educacional que não teria existido, não fosse uma conformação doutrinária do governo brasileiro ao fascismo italiano, adotado e liderado por um Getúlio Vargas que encabeçara o movimento insurrecional de ‘30.
Quanto a Ernestina (filha de Ernesto Dantas, membro de uma elite local, cujo raio de influência estendia-se por 3 estados nordestinos, Pernambuco, Paraíba e RG. do Norte, cumprindo assim uma trilha similar à antiga rota dos bandeirantes, e cujo ponto central era a Vila de Teixeira, onde a oligarquia se concentrava), lhe caberia ainda a missão adicional de preparar as candidatas para um magistério que logo se tornaria exclusivamente feminino, apesar da nova profissão já nascer em desvantagem salarial se comparada às outras atividades masculinas custeadas pelo Estado.
O fascismo brasileiro do começo do século passado emanara diretamente daquela Europa saída de uma guerra (1914-18) que, entre tantos desastres causados por aspirações nacionalistas e seus inevitáveis separatismos étnicos e regionais, trouxera em seu bojo como uma forma de compensação a derrocada do império austro-húngaro, cujo preço a pagar com o desmembramento dos antigos aliados, daria surgimento a novas países como Finlândia, Hungria, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia, etc.
Este novo nacionalismo saíra-se fortalecido pela vitória de 1918, e faria brotar, pouquíssimos anos (4) após, o fascismo na Itália, e apenas uma década depois, o nazismo na Alemanha. As estruturas de poder eram iguais nos dois casos, com a diferença de que o teuto-nazi, mais que a simples truculência do faccio itálico, trazia o racismo étnico enredado numa crença até ali cuidadosamente preparada pela jovem filosofia europeia: a absurda ideia do suprematismo branco.
Este racismo seletor conseguiu expandir-se além-fronteiras, e por força da imitação chegara a plagas distantes como o Brasil – onde desde meados do século anterior (XIX) o eugenismo eurocentrista viera sendo inoculado junto à elite colonial brasileira, sendo esta nova e conceitual forma de preconceito social fácil e previsivelmente absorvida pela mentalidade escravagista reinante no país há mais de 3 séculos. Tinha-se ali um tártaro sócio/mental de difícil expurgo, haja visto o comportamento insensível ainda hoje adotado pelos ricos do Brasil diante da situação de miséria e abandono em que se encontram seus pobres.
Esse surpreendente benefício – elevação de escolaridade – em meio aos males inerentes a uma das mais graves deformações políticas do liberalismo econômico que foi o nazi-fascismo, com sua completa abolição dos sistemas judiciário e parlamentarista (e muito em breve escancarando ao mundo as portas da perversidade), houve no entanto de abrir pela primeira vez às mulheres brasileiras uma clara oportunidade de assumirem aquele que fora, sem nenhuma dúvida, o mais antigo senão primitivo papel exercido por suas congêneres, o de educadoras da prole. Desde o remoto de uma era formativa das primeiras aldeias neolíticas (3.500 a.C.)
Ernestina era filha de Ernesto Dantas, um líder político da ala conservadora, porém de índole mais civilizada que alguns antecessores seus no comando oligárquico. Um desses antigos chefes conseguira expulsar das terras do Teixeira cordelistas como Francisco das Chagas Batista e Leandro Gomes de Barros, e provocado verdadeira debandada de cantadores feito Hugulino Nunes da Costa (praticamente o inventor da viola de 12 cordas e de varias modalidades de cantoria), um vate imbatível que tinha em Romano do Teixeira (ou da Mãe D’água) seu êmulo maior.
(continua no próximo episódio)