Em caminhadas recentes pelos calçadões de Tambaú, netos curiosos e questionadores, vindos de longe, instigaram-me a fazer-lhes breve relato sobre como se deu a expansão da cidade, do Varadouro para a orla marítima. Em tom de quase suspense, para aumentar seu interesse, contei-lhes, de saída, que esta expansão se deu em processo de evolução urbana que demorou cerca de dois séculos e que a cidade viveu suas primeiras décadas sob a ameaça de indígenas que lutavam por seu território e de corsários à procura de riquezas.
No princípio, as áreas litorâneas de Tambaú foram consideradas distantes, insalubres, de difícil acesso, e impróprias para a ocupação e outros interesses. Os tempos correram e o complexo Varadouro-Cidade Alta, marco da origem da cidade e que se consolidara como core de suas atividades econômicas, por causas diversas, começou a perder hegemonia, em detrimento de outros espaços urbanos que ganhariam protagonismo como áreas de expansão.
Afastadas as sombras da dominação espanhola e holandesa e com a questão da defesa do território não mais tão preocupante, estando o Varadouro e Cidade Alta, espacialmente já saturados, à urgência por áreas de expansão, a busca pela orla, na perspectiva do crescimento urbano seria alvo, com certeza, mesmo diante de circunstâncias adversas.
Mais tarde, o vazio urbano que se interpunha entre o centro e uma pequena franja da orla que viera a ser habitada, nesta cidade portuguesa-espanhola-brasileira que por esta razão teve diferentes denominações: Nossa Senhora das Neves (1585), Filipeia de Nossa Senhora das Neves (1585), Frederica-Frederickstad (1634-1554), Parahyba (1654-1930) e João Pessoa (1930), por certo, se tornaria sujeito de processo de conurbação que, no meu entender, só vai encontrar explicação em substanciais estudos de sua evolução econômica e histórico-urbana, em contexto regional.
A localização do pequeno ancoradouro, às margens do Sanhauá, que deu suporte ao desenvolvimento inicial da cidade, logo se revelou controversa e problemática. Questões espaciais, geotécnicas e políticas, foram vistas como impeditivas e erguer um porto, ali, pôs grupos políticos em confronto. Havia os que o defendiam como impulsionador de crescimento e os que o reprovavam pela localização. O porto no Varadouro, então, se transforma em tema polêmico e campo de contestações, de tanta significância, que buscar alternativas para localização, contratação de recursos e construção da obra dominaria a ribalta política local, de maneira acalorada, por longo tempo. De antemão, tomava-se como empecilho ao projeto na Cidade Baixa: a pouca pujança econômica do Estado, gerando descrédito no empreendimento; o terreno lamoso considerado impróprio ao assentamento do cais; os entraves à navegação de alto calado, impostos pelo leito pedregoso do Paraíba; a inevitável sedução por um porto marítimo; os choques políticos que o tema suscitava; a emulação provocada pelo fato de que várias cidades-capitais tinham portos marítimos (Recife, Salvador, Fortaleza, São Luís, Vitória, Rio de Janeiro, Florianópolis e outros).
Por longo tempo (1585-1890), o crescimento da capital ficou estagnado e confinado em áreas à margem direita do Sanhauá. No entanto, notório impulso se verificou no final do século XIX e começo do século XX, com as intervenções de caráter higienista, sugeridas pelo sanitarista Saturnino de Brito e por expansões que extrapolando os domínios territoriais iniciais, resultariam na formação de novos bairros. Em linhas gerais, os vetores dessa expansão se projetaram na direção de Tambiá-Mandacaru, Torre-Miramar e Jaguaribe-Cruz das Armas, impulsionando essas urbanizações novas a papéis e funções, antes exclusivos de Varadouro e Cidade Alta.
Com essa movimentação, não seria exagero enxergar-se que a cidade se desprendia do seu núcleo inicial e dava os primeiros passos na direção do mar. O Varadouro, por consequência, não tardaria a caminhar para o que lhe vem a acontecer: atividades transferidas, prédios comerciais esvaziados, casario residencial deixado para trás, ruas desertas ou semimortas, a algazarra das oficinas, o barulho de martelos e bigornas a ecoar, tornando esse downtown secular que conhecera período áureo em espaço urbano deprimido e incômodo.
Em verdade, o arrefecimento das funções urbanas do Varadouro começara já a partir da última década do Século XIX, quando a urbanização da Cidade Alta e de áreas contíguas à Lagoa dos Irerês se consolidava, concentrando infraestrutura, moradia e atividades, em ruas e logradouros no entorno das Igrejas e Conventos (Carmo, Jesuítas, São Antônio, São Bento), e de edificações e estabelecimentos do Comércio e da Administração Pública (do Executivo, Legislativo, Judiciário, e da Educação).
Certamente, com a transferência do Porto para Cabedelo, o Centro Histórico, mais especialmente, o Varadouro, iniciaria fase de declínio. Atividades portuárias e afins foram lentamente transferidas para próximo à embocadura do Rio Paraíba. Armazéns e fábricas cerram portas, galpões fabris viram abrigo de morcegos e andorinhas, o comércio busca novos endereços e habitar ali interessava cada vez menos.
As dificuldades encontradas no leito do Sanhauá e no Rio Paraíba, cuja navegação estava sujeita ao fluxo e refluxo das marés, logo foram vistas como empecilho à construção do cais e à navegação de maior calado que se pretendia introduzir ali. Estes entraves cedo escancarariam a necessidade de um melhor locus para o porto e os pontos sugeridos seriam Tambaú ou áreas próximas à foz do Paraíba, em Cabedelo.
A crônica registra que uma primeira manifestação, neste sentido, ocorrera em 1657, por iniciativa de Francisco de Brito Freyre, então Governador de Pernambuco, general e almirante, combatente dos últimos dias dos confrontos que culminariam com a expulsão dos holandeses do território brasileiro. O general-almirante via inconvenientes em estar a cidade da Parahyba situada longe do mar. As autoridades da Capitania, em Pernambuco, consideraram Freyre um intrometido e a Coroa Portuguesa não deu ouvidos à sua demanda.
A ideia de transferência do porto dormitou cerca de dois séculos, ressurgindo de forma mais agressiva em 1914, quando políticos paraibanos, recorrendo ao então Senador Epitácio Pessoa, o levaram a destinar recursos, por emenda parlamentar, para estudos preliminares de viabilidade de um porto em Tambaú. Recursos foram destinados, mas o emprego das verbas públicas e os estudos finais realizados tornaram-se questões indigestas. Alguns anos à frente, a história do porto se confundiria com mais intrigas políticas, acusações de corrupção e mau emprego de outras verbas públicas para esse fim, segundo Joffily, no livro Porto Político, de 1983.
No plano concebido para a expansão urbana da Cidade da Parahyba, nos anos 30 do século passado, o renomado arquiteto Nestor de Figueiredo sugeriu a mudança do porto para próximo à embocadura do Rio Paraíba, o que viria a se concretizar em 1935. A transferência das atividades portuárias para Cabedelo seria um duro golpe na vida do Varadouro, representando o início de progressivo baque nas atividades e funções do bairro e que também afetaria a Cidade Alta.
Com a visão de que as áreas baixas do Varadouro, as áreas do topo da colina e as áreas próximas ao Parque Sólon de Lucena já haviam sido ocupadas por completo, o plano de expansão urbanística de Nestor de Figueiredo projeta o crescimento da cidade para áreas que representavam avanço para o leste. – Seria já sinal de que a orla marítima estaria trazendo influência à expansão da cidade? - Teria sido o início de uma largada na direção do mar? Uma certeza já se podia ter: iniciava-se a lenta agonia do Varadouro e o progressivo abandono do bairro que dera origem à cidade.
Com estes movimentos, em espaços de um mesmo complexo urbano, as frentes de ocupação territorial só avançariam mais intensamente na direção uma da outra ⏤ centro-praia ou praia-centro ⏤ no começo dos anos de 1950. Por óbvio, a fronteira mais ativa e que mais fixava população sobre essas novas áreas era a que avançava do centro para a orla.
Empreendimentos públicos e privados, de pequeno, médio e grande, implantados nesse intermezzo, tornavam-se células importantes a mover o crescimento que se operava. Ocuparam esse vazio, conjuntos habitacionais e loteamentos que aceleraram o processo de conurbação em andamento na área e atuaram como tentáculos importantes a acelerar o preenchimento desse espaço, os Conjuntos Residenciais João Goulart (Torre), Miramar (Miramar), Jardim América (Bessa), Pedro Gondim, Castelo Branco e os Loteamentos Treze de Maio, João Agripino, Bairro dos Estados, Manaíra e Bessa, dentre outros, que resultaram em novos bairros.
Na esfera desse avanço para o leste, de muita significação territorial, seria, cada uma em seu tempo, a implantação da Praça da Independência, do Lyceu Paraibano, do Hospital Santa Isabel, do Colégio Pio X, do Mercado da Torre, e de outras instituições para além da Lagoa, da Faculdade de Medicina no Jaguaribe e do Campus Universitário da UFPB, bem como a abertura das Avenidas Epitácio Pessoa, Beira Rio e Rui Carneiro, a construção da via expressa BR 230, esta concebida de modo a integrar as duas fronteiras sem interpor barreiras ao avanço para a orla que se verificava.
A criação do Distrito de Tambaú ⏤ Lei Municipal nº 79, de 25/08/1892, por certo, também se constituiu elemento importante a contribuir para a ocupação do vazio urbano entre o Varadouro e a orla marítima. O status jurídico conferido ao Distrito, sem dúvida, contribuiria para abrir portas aos negócios imobiliários e Tambaú que, por longo tempo, se caracterizara apenas como colônia de pescadores e local de veraneio de alguns, não passando de aglomerado pouco significante, começa a crescer em meados dos anos de 1960, não tardando a influenciar a ocupação de áreas próximas e a se converter em bairro próspero e cobiçado.
Em seguida, a dinâmica socioeconômica e político-administrativa trouxeram transformações e mudanças a tal espaço que até os céus duvidavam. Tal qual organismo em desenvolvimento, a cidade tradicional, até então presa ao Centro Histórico e espaços contíguos, foi recebendo intervenções espontâneas ou planejadas e se expondo a fatores que levaram à incorporação de novas áreas e ao crescimento e desempenho de funções urbanas que lhe imprimiriam outros rumos, mesmo sem contar esta com os impulsos de um porto em seu território. A cidade se despedia do seu porto no Sanhauá!
Nos últimos cinquenta anos, o processo de crescimento & desenvolvimento da cidade vivenciou períodos intensos de produção do espaço urbano, adensados, atualmente, em mais de 60 bairros e população que beira um milhão de habitantes. A conurbação preencheu, por inteiro, o vazio entre o Varadouro e a orla marítima, formando novos espaços de urbanização contínua e de expansão orgânica e funcional. Mesmo diante de limitações e barreiras, a ocupação da faixa litorânea se deu de forma alargada, estendendo-se para Cabedelo e na direção da cidade do Conde. Horizontalização e verticalização constituíram-se processos superlativos dessa expansão urbana que deu à cidade uma nova dimensão, e sobre a qual muitos estudos têm sido realizados.
Para concluir, fecho com algumas constatações: o Varadouro continua bairro em agonia, ainda que visitado por intervenções pontuais esporádicas; só um abrangente e bem integrado programa de conversão, aplicado a essa zona urbana, mirando sustentabilidade, valorizando potencialidades e a inclusão de sua população, seria capaz de devolver ao bairro a vitalidade almejada; a cidade de João Pessoa pode crescer sem as consequências que adviriam da presença de um porto em Tambaú; o quase centenário Cabedelo é até hoje um porto que não satisfaz; busca-se, ainda hoje, um melhor sítio para a localização de competitivo porto comercial e os arredores de Lucena são a bola da vez; a economia do Estado continua cambiante, não tendo se fortalecido de modo a viabilizar um porto com a capacidade de retroalimentá-la.
De resto, as férias dos meus netos terminaram, todos voltaram ao seu país e tudo continua como dantes, menos no Varadouro que agora quer fazer cinema.