Em caminhadas recentes pelos calçadões de Tambaú, netos curiosos e questionadores, vindos de longe, instigaram-me a fazer-lhes breve re...

Do Sanhauá a Tambaú

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Em caminhadas recentes pelos calçadões de Tambaú, netos curiosos e questionadores, vindos de longe, instigaram-me a fazer-lhes breve relato sobre como se deu a expansão da cidade, do Varadouro para a orla marítima. Em tom de quase suspense, para aumentar seu interesse, contei-lhes, de saída, que esta expansão se deu em processo de evolução urbana que demorou cerca de dois séculos e que a cidade viveu suas primeiras décadas sob a ameaça de indígenas que lutavam por seu território e de corsários à procura de riquezas.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
1647 ▪ Localização do núcleo urbano de João Pessoa, então chamada de Frederikstad, em mapa elaborado durante a Invasão Holandesa ▪ Fonte: New Holland Foundation
No princípio, as áreas litorâneas de Tambaú foram consideradas distantes, insalubres, de difícil acesso, e impróprias para a ocupação e outros interesses. Os tempos correram e o complexo Varadouro-Cidade Alta, marco da origem da cidade e que se consolidara como core de suas atividades econômicas, por causas diversas, começou a perder hegemonia, em detrimento de outros espaços urbanos que ganhariam protagonismo como áreas de expansão.

Afastadas as sombras da dominação espanhola e holandesa e com a questão da defesa do território não mais tão preocupante, estando o Varadouro e Cidade Alta, espacialmente já saturados, à urgência por áreas de expansão, a busca pela orla, na perspectiva do crescimento urbano seria alvo, com certeza, mesmo diante de circunstâncias adversas.

Mais tarde, o vazio urbano que se interpunha entre o centro e uma pequena franja da orla que viera a ser habitada, nesta cidade portuguesa-espanhola-brasileira que por esta razão teve diferentes denominações: Nossa Senhora das Neves (1585), Filipeia de Nossa Senhora das Neves (1585), Frederica-Frederickstad (1634-1554), Parahyba (1654-1930) e João Pessoa (1930), por certo, se tornaria sujeito de processo de conurbação que, no meu entender, só vai encontrar explicação em substanciais estudos de sua evolução econômica e histórico-urbana, em contexto regional.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Vista do Varadouro, em gravura de Frans Post
A localização do pequeno ancoradouro, às margens do Sanhauá, que deu suporte ao desenvolvimento inicial da cidade, logo se revelou controversa e problemática. Questões espaciais, geotécnicas e políticas, foram vistas como impeditivas e erguer um porto, ali, pôs grupos políticos em confronto. Havia os que o defendiam como impulsionador de crescimento e os que o reprovavam pela localização. O porto no Varadouro, então, se transforma em tema polêmico e campo de contestações, de tanta significância, que buscar alternativas para localização, contratação de recursos e construção da obra dominaria a ribalta política local, de maneira acalorada, por longo tempo. De antemão, tomava-se como empecilho ao projeto na Cidade Baixa: a pouca pujança econômica do Estado, gerando descrédito no empreendimento; o terreno lamoso considerado impróprio ao assentamento do cais; os entraves à navegação de alto calado, impostos pelo leito pedregoso do Paraíba; a inevitável sedução por um porto marítimo; os choques políticos que o tema suscitava; a emulação provocada pelo fato de que várias cidades-capitais tinham portos marítimos (Recife, Salvador, Fortaleza, São Luís, Vitória, Rio de Janeiro, Florianópolis e outros).

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Março de 1922 ▪ Obras do porto internacional do Varadouro ▪ João Pessoa, então denominada de Parahyba do Norte
Por longo tempo (1585-1890), o crescimento da capital ficou estagnado e confinado em áreas à margem direita do Sanhauá. No entanto, notório impulso se verificou no final do século XIX e começo do século XX, com as intervenções de caráter higienista, sugeridas pelo sanitarista Saturnino de Brito e por expansões que extrapolando os domínios territoriais iniciais, resultariam na formação de novos bairros. Em linhas gerais, os vetores dessa expansão se projetaram na direção de Tambiá-Mandacaru, Torre-Miramar e Jaguaribe-Cruz das Armas, impulsionando essas urbanizações novas a papéis e funções, antes exclusivos de Varadouro e Cidade Alta.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
1950s ▪ Avenida Epitácio Pessoa, no sentido Centro ⇀ Praia de Tambaú
Fonte: Skyscrapper
Com essa movimentação, não seria exagero enxergar-se que a cidade se desprendia do seu núcleo inicial e dava os primeiros passos na direção do mar. O Varadouro, por consequência, não tardaria a caminhar para o que lhe vem a acontecer: atividades transferidas, prédios comerciais esvaziados, casario residencial deixado para trás, ruas desertas ou semimortas, a algazarra das oficinas, o barulho de martelos e bigornas a ecoar, tornando esse downtown secular que conhecera período áureo em espaço urbano deprimido e incômodo.

Em verdade, o arrefecimento das funções urbanas do Varadouro começara já a partir da última década do Século XIX, quando a urbanização da Cidade Alta e de áreas contíguas à Lagoa dos Irerês se consolidava, concentrando infraestrutura, moradia e atividades,
historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
1950s ▪ Avenida Guedes Pereira ▪ Fonte: IBGE
em ruas e logradouros no entorno das Igrejas e Conventos (Carmo, Jesuítas, São Antônio, São Bento), e de edificações e estabelecimentos do Comércio e da Administração Pública (do Executivo, Legislativo, Judiciário, e da Educação).

Certamente, com a transferência do Porto para Cabedelo, o Centro Histórico, mais especialmente, o Varadouro, iniciaria fase de declínio. Atividades portuárias e afins foram lentamente transferidas para próximo à embocadura do Rio Paraíba. Armazéns e fábricas cerram portas, galpões fabris viram abrigo de morcegos e andorinhas, o comércio busca novos endereços e habitar ali interessava cada vez menos.

As dificuldades encontradas no leito do Sanhauá e no Rio Paraíba, cuja navegação estava sujeita ao fluxo e refluxo das marés, logo foram vistas como empecilho à construção do cais e à navegação de maior calado que se pretendia introduzir ali. Estes entraves cedo escancarariam a necessidade de um melhor locus para o porto e os pontos sugeridos seriam Tambaú ou áreas próximas à foz do Paraíba, em Cabedelo.

A crônica registra que uma primeira manifestação, neste sentido, ocorrera em 1657, por iniciativa de Francisco de Brito Freyre, então Governador de Pernambuco, general e almirante, combatente dos últimos dias dos confrontos que culminariam com a expulsão dos holandeses do território brasileiro. O general-almirante via inconvenientes em estar a cidade da Parahyba situada longe do mar. As autoridades da Capitania, em Pernambuco, consideraram Freyre
historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
um intrometido e a Coroa Portuguesa não deu ouvidos à sua demanda.

A ideia de transferência do porto dormitou cerca de dois séculos, ressurgindo de forma mais agressiva em 1914, quando políticos paraibanos, recorrendo ao então Senador Epitácio Pessoa, o levaram a destinar recursos, por emenda parlamentar, para estudos preliminares de viabilidade de um porto em Tambaú. Recursos foram destinados, mas o emprego das verbas públicas e os estudos finais realizados tornaram-se questões indigestas. Alguns anos à frente, a história do porto se confundiria com mais intrigas políticas, acusações de corrupção e mau emprego de outras verbas públicas para esse fim, segundo Joffily, no livro Porto Político, de 1983.

No plano concebido para a expansão urbana da Cidade da Parahyba, nos anos 30 do século passado, o renomado arquiteto Nestor de Figueiredo sugeriu a mudança do porto para próximo à embocadura do Rio Paraíba, o que viria a se concretizar em 1935. A transferência das atividades portuárias para Cabedelo seria um duro golpe na vida do Varadouro, representando o início de progressivo baque nas atividades e funções do bairro e que também afetaria a Cidade Alta.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Projeto de remodelação e extensão da cidade de João Pessoa apresentado pelo arquiteto Nestor de Figueiredo em 1932 ▪ Fonte: ResearchGate
Com a visão de que as áreas baixas do Varadouro, as áreas do topo da colina e as áreas próximas ao Parque Sólon de Lucena já haviam sido ocupadas por completo, o plano de expansão urbanística de Nestor de Figueiredo projeta o crescimento da cidade para áreas que representavam avanço para o leste. – Seria já sinal de que a orla marítima estaria trazendo influência à expansão da cidade? - Teria sido o início de uma largada na direção do mar? Uma certeza já se podia ter: iniciava-se a lenta agonia do Varadouro e o progressivo abandono do bairro que dera origem à cidade.

Com estes movimentos, em espaços de um mesmo complexo urbano, as frentes de ocupação territorial só avançariam mais intensamente na direção uma da outra ⏤ centro-praia ou praia-centro ⏤ no começo dos anos de 1950.
historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
1950s ▪ Av. Epitácio Pessoa, sentido Tambaú ⇀ Centro ▪ Fonte: Skyscrapper
Por óbvio, a fronteira mais ativa e que mais fixava população sobre essas novas áreas era a que avançava do centro para a orla.

Empreendimentos públicos e privados, de pequeno, médio e grande, implantados nesse intermezzo, tornavam-se células importantes a mover o crescimento que se operava. Ocuparam esse vazio, conjuntos habitacionais e loteamentos que aceleraram o processo de conurbação em andamento na área e atuaram como tentáculos importantes a acelerar o preenchimento desse espaço, os Conjuntos Residenciais João Goulart (Torre), Miramar (Miramar), Jardim América (Bessa), Pedro Gondim, Castelo Branco e os Loteamentos Treze de Maio, João Agripino, Bairro dos Estados, Manaíra e Bessa, dentre outros, que resultaram em novos bairros.

Na esfera desse avanço para o leste, de muita significação territorial, seria, cada uma em seu tempo, a implantação da Praça da Independência, do Lyceu Paraibano, do Hospital Santa Isabel, do Colégio Pio X, do Mercado da Torre, e de outras instituições para além da Lagoa, da Faculdade de Medicina no Jaguaribe e do Campus Universitário da UFPB, bem como a abertura das Avenidas Epitácio Pessoa, Beira Rio e Rui Carneiro, a construção da via expressa BR 230, esta concebida de modo a integrar as duas fronteiras sem interpor barreiras ao avanço para a orla que se verificava.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Avenida Epitácio Pessoa, em 1957 ▪ Fonte: IBGE
A criação do Distrito de Tambaú ⏤ Lei Municipal nº 79, de 25/08/1892, por certo, também se constituiu elemento importante a contribuir para a ocupação do vazio urbano entre o Varadouro e a orla marítima. O status jurídico conferido ao Distrito, sem dúvida, contribuiria para abrir portas aos negócios imobiliários e Tambaú que, por longo tempo, se caracterizara apenas como colônia de pescadores e local de veraneio de alguns, não passando de aglomerado pouco significante, começa a crescer em meados dos anos de 1960, não tardando a influenciar a ocupação de áreas próximas e a se converter em bairro próspero e cobiçado.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Praia de Tambaú, em 1957 ▪ Fonte: IBGE
Em seguida, a dinâmica socioeconômica e político-administrativa trouxeram transformações e mudanças a tal espaço que até os céus duvidavam. Tal qual organismo em desenvolvimento, a cidade tradicional, até então presa ao Centro Histórico e espaços contíguos, foi recebendo intervenções espontâneas ou planejadas e se expondo a fatores que levaram à incorporação de novas áreas e ao crescimento e desempenho de funções urbanas que lhe imprimiriam outros rumos, mesmo sem contar esta com os impulsos de um porto em seu território. A cidade se despedia do seu porto no Sanhauá!

Nos últimos cinquenta anos, o processo de crescimento & desenvolvimento da cidade vivenciou períodos intensos de produção do espaço urbano, adensados, atualmente, em mais de 60 bairros e população que beira um milhão de habitantes. A conurbação preencheu, por inteiro, o vazio entre o Varadouro e a orla marítima, formando novos espaços de urbanização contínua e de expansão orgânica e funcional. Mesmo diante de limitações e barreiras, a ocupação da faixa litorânea se deu de forma alargada, estendendo-se para Cabedelo e na direção da cidade do Conde. Horizontalização e verticalização constituíram-se processos superlativos dessa expansão urbana que deu à cidade uma nova dimensão, e sobre a qual muitos estudos têm sido realizados.

historia joao pessoa paraiba porto cabedelo varadouro
Imagem: Alphabet
Para concluir, fecho com algumas constatações: o Varadouro continua bairro em agonia, ainda que visitado por intervenções pontuais esporádicas; só um abrangente e bem integrado programa de conversão, aplicado a essa zona urbana, mirando sustentabilidade, valorizando potencialidades e a inclusão de sua população, seria capaz de devolver ao bairro a vitalidade almejada; a cidade de João Pessoa pode crescer sem as consequências que adviriam da presença de um porto em Tambaú; o quase centenário Cabedelo é até hoje um porto que não satisfaz; busca-se, ainda hoje, um melhor sítio para a localização de competitivo porto comercial e os arredores de Lucena são a bola da vez; a economia do Estado continua cambiante, não tendo se fortalecido de modo a viabilizar um porto com a capacidade de retroalimentá-la.

De resto, as férias dos meus netos terminaram, todos voltaram ao seu país e tudo continua como dantes, menos no Varadouro que agora quer fazer cinema.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Texto impecável que traz um resumo incontestável da evolução urbana de nossa cidade.

    ResponderExcluir
  2. Maravilhoso!!!

    ResponderExcluir
  3. Preciso, didático e orientador o belo texto. Parabens.
    Francisco de Assis.

    ResponderExcluir

leia também