Nascido em Samos , Pitágoras (570-495 a.C.) passou parte de sua vida realizando um grande périplo, que se pode considerar iniciático, q...

Comuns são as coisas dos amigos

Nascido em Samos, Pitágoras (570-495 a.C.) passou parte de sua vida realizando um grande périplo, que se pode considerar iniciático, quando se propôs a uma aprendizagem com os egípcios, árabes, caldeus, hebreus, fenícios e persas, com os quais estudou as ciências da matemática, dos ritos sagrados, dos sonhos, a adivinhação pelo incenso e a sabedoria e a fala dos egípcios, e “da errância acerca desses povos, importou a maior parte da sabedoria” (XII, 10), firmando-se como um dos maiores filósofos, matemáticos e místicos da Grécia.

Junto aos caldeus, esteve com Zoroastro, por quem foi purificado e instruído a se manter puro. Desde então, é notória a sua busca de pureza da alma e do corpo,
Busto de Pitágoras ▪ Museu Capitolino ▪ Roma
abstendo-se de matar, do consumo de seres animados e do contato com açougueiros e caçadores.

Na Jônia, onde se encontra a sua pátria, Samos, ele fundou sua escola, o Hemiciclo de Pitágoras. Nela, praticava o exame fisiognomônico, como um dos requisitos para a admissão dos discípulos. Este mesmo critério ele utilizava para acolher alguém em sua amizade. Aulo Gélio, em Noites áticas, não só atesta essa primeira prova de admissão à escola pitagórica, como dizia ser necessário o admitido enfrentar uma segunda: manter-se calado durante dois anos, na condição de ouvinte, sem interferir ou tomar notas, aprendendo, antes de qualquer coisa, a observar e a escutar. Os que se elogiavam a si mesmos, como o rico Cylon, jamais seriam aceitos na sua escola, o que nos revela o quão difícil seria hoje, Pitágoras ter discípulos, se é que não enfrentasse algum processo por discriminação e assédio moral...

A sua sabedoria recusava a ideia da vitória, mas incentiva a luta. O desejo de vitória e a busca da honra e da glória geram invejosos e tornam as pessoas não puras. A transmissão de seus dogmas, o primeiro na Grécia na busca da pureza, compreendia a imortalidade da alma, a reencarnação e a compreensão de um ciclo que se repete, por serem todos os seres animados de igual gênero. Entendia que a divulgação do livre pensamento visava combater a dominação e a ambição pelo poder, para tanto, era-lhe frequente proferir a seguinte sentença, como preceito a ser continuamente transmitido, de discípulo a discípulo:

“Deve-se expulsar com todo artifício e recortar com fogo, ferro e variados artifícios, do corpo, a doença; da alma, a ignorância; do ventre, a suntuosidade; da cidade, a discórdia; de casa, o dissenso, e, ao mesmo tempo, a desmedida de todas as coisas” (XXII, 8-12).
Pitágoras
Crendo nas sucessivas reencarnações da alma, Pitágoras não só lembrava da vida anterior de pessoas que encontrava, dizendo-lhes o que suas almas viveram antes deles, como também se recordava e dava provas incontestáveis de ter sido Euforbo, filho de Panthoo, que lutara em Troia, morto por Menelau. Lembrava, ainda, das outras vidas que tivera, alegando que, sendo a alma imortal, essas lembranças de vidas antigas chegam para os que estão purificados. Por mais de uma vez, seus discípulos deram provas de que ele falava para várias comunidades, ao mesmo tempo, ainda que estivesse a grandes distâncias delas, como quando se reuniu e conversou em comum com seus discípulos, em Metaponto, na Itália, e em Taormina, na Sicília.

Consciente da unidade de todas as coisas – falava com os animais, com os rios e com a natureza –, Pitágoras buscava sentir o todo, procurando compreender
filosofia grecia pitagoras samos
Pitágoras e seus Discípulos ▪ Wikimedia
“a harmonia universal das esferas e dos astros,que se movem por si, que nós não ouvimos pela pequenez de nossa natureza” (XXX, 3-6).

Adepto da refeição frugal – frutas, vegetais e mel –, entendendo ser a alimentação necessária para o equilíbrio do corpo e da alma, exortava o abster-se de favas e de carne, por entender que, os primeiros seres foram inteiros e, com o passar do tempo, operou-se uma distinção no nascimento de plantas e animais, a partir da putrefação do que estava semeado sobre a terra, cujo apodrecimento fez se constituírem os homens e brotarem as favas. Vem daí o fato de ter convencido um boi a não comer favas, por estar, em última análise, comendo a si mesmo (eu mesmo estaria, irremediavelmente, condenado, pois além de comer fava, ainda a cozinho com mocotó de boi, pé de porco e linguiça...).

Tinha consciência de que os homens não são deuses, mas “ser verdadeiro” era a única atitude que podia aproximar homens e divindades. E o “ser verdadeiro” significava, entre outras coisas, não ser prepotente, não incitar a ira com discurso afiado, não violar as leis, não se afligir com as moléstias, não viver inativo, não querer manter a vida quando estiver morrendo e, sobretudo, não seguir a opinião da maioria, procurando sempre as vias dos oráculos e dos homens estudados (XLIII, 1-13).

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▪ Wikimedia
Com relação aos amigos, o seu amor era demasiado, por entender que “comuns são as coisas dos amigos, e que o amigo é um outro eu mesmo” (κοινὰ μὲν τὰ τῶν φίλῶν, τὸν δὲ φίλον ἄλλον ἑαυτόν, XXXIII, 1-5), de quem cuidava, do corpo e da alma, com cantos, magias e música. A essência de sua filosofia é a libertação da inteligência e sua volta ao uno, princípio gerador dessa inteligência. Conhecimento que se baseava na transmissão oral, por sucessão, entre os seus discípulos, guardado como “indizível” (ἐπιστήμη ἄρρητος), sem que houvesse escritas que a perpetuassem, dela sendo mantida apenas uma fagulha, obscura e difícil de colher (LVII), mas comuns aos que entraram na sua escola.

Estes fatos a respeito de Pitágoras estão acessíveis, em língua portuguesa, na edição bilíngue — grego-português — de Vida de Pitágoras, obra de Porfírio, filósofo fenício, que viveu entre 234 e 305 de nossa era, numa tradução do professor Juvino Alves Maia Júnior, da Universidade Federal da Paraíba (Nova Acrópole: Belo Horizonte, 2021), em livro físico e digital (Kindle). Tradução com vários méritos. O primeiro deles é colocar novamente no circuito comercial e cultural um livro não fácil de achar em língua portuguesa; o segundo, é a tradução em si, direta do grego, sem invenções ou invencionices, sem supressões, sem acréscimos desnecessários, sem interpretações por julgar que o leitor é incapaz de entender; sem querer o tradutor ser mais do que o autor. O terceiro mérito é que tornando-o acessível ao grande público, especializado ou não na cultura clássica, os estudantes de língua grega terão nesse livro uma excelente oportunidade para estudar,
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Juvino Alves Maia Júnior
a um só tempo, o grego e o processo de tradução. Vê-se, pois, que mais um mérito do livro é poder ser utilizado didaticamente, com o apoio de uma introdução objetiva e muitas notas, que ajudam no seu entendimento, sem que o tradutor se intrometa diretamente no texto, interpretando em lugar de traduzir.

Este tipo de tradução, que gostamos de chamar “tradução operacional”, em homenagem ao nosso inesquecível professor Maurice-Félix van Wonsell, é o resultado da aprendizagem do professor Juvino, que a teve bem antes de mim, com o não menos inesquecível professor Henrique Graziano Murachco, pregando sempre que um texto não pedia senão que o deixássemos falar. E quando isto acontece, a tradução e um dos seus possíveis significados fluem naturalmente.

O acesso, em fonte primária, a um filósofo cuja biografia é cheia de lacunas revela-nos, a julgar pelo que Porfírio escreveu, muito da sabedoria de Pitágoras, cujos muitos ensinamentos estão para além de seu tempo. Lições que revelam um árduo caminho a ser trilhado por quem deseja transformar-se: a aprendizagem da ciência deve acompanhar a aprendizagem da vida, a partir da consciência de um mundo matemático, em que o dez é o número perfeito, cuja etimologia remontando a δέχομαι, receber, comporta a “recepção das dez potências numéricas” – “O Uno, a Díade, e a Tríade, como potências inteligíveis, que somadas às potências sensíveis, que são quatro: terra, água, ar e fogo, somam dez” (notas 64 e 65, p. 91); a compreensão de que o que chamamos de místico não é senão uma maneira particular de perceber que a vida exige um direcionamento diferente, rumo à espiritualidade, num exercício contínuo
filosofia grecia pitagoras samos
para o corpo e para a alma, que nem todos estão dispostos a fazer. Diante disso, a iniciação se impõe, com o iniciado abstendo-se da matéria bruta, como meio de refinamento, que deverá sutilizar a casca da alma, permitindo, por exemplo, o desdobramento, para comunicar-se com vários povos ao mesmo tempo; a harmonização com a inteireza de todos os elementos da natureza, de cuja divisão e especiação surgirão os seres viventes, numa antecipação de Darwin (evolução e seleção das espécies) e de Haeckel (monismo); a prática do respeito ao próximo, vendo o outro em si e no outro a si próprio; a realização de um exame assíduo e minucioso do que se fez e do que se deixou de fazer durante o dia, de modo a se redirecionar quando houver desvio do caminho traçado; ter na concepção da imortalidade da alma e das reencarnações, um meio para reparo dos desvios.

O mais importante dos ensinamentos, contudo, julgo ser o fato de compreender que tudo isto se torna “indizível”, não porque não tenha como se dizer, mas porque as ações são mais fortes do que as palavras. Em oposição à verborragia frequente da filosofice, Pitágoras sabia que qualquer discurso era vão se as ações não correspondessem ao que se prega.

O professor Juvino Alves Maia, portanto, ao, generosamente, nos presentear com um volume de sua tradução, nos fornece o acesso a estes ensinamentos e reafirma, como Pitágoras, que comuns são as coisas dos amigos.

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