Ana Flávia Nóbrega começa bem seu texto sobre o Brasil Cachaças, evento dos próximos 20, 21 e 22 de outubro, no Espaço Cultural, ao lembrar a condição de bebida estigmatizada por ser “originária da população mais afastada dos locais de poder”. Acerta em cheio.
Não custa imaginar que a cachaça tenha sido consumida na Paraíba bem antes da ocupação portuguesa. Não era de cana ainda, mas de mandioca.
Não custa imaginar que a cachaça tenha sido consumida na Paraíba bem antes da ocupação portuguesa. Não era de cana ainda, mas de mandioca.
Sabe-se que antes da chegada dos portugueses os normandos já dormiam com as nossas ninfas potiguares, enquanto o índio macho cortava o pau de tinta que eles usurpavam. Sabe-se também da tara dos franceses pela borra do vinho, a cachaça lá deles que não devia faltar nas cumbucas traficantes. E de saber feito temos que o índio era chegado à embriaguez com a cachaça de mandioca processada ou salivada na boca das caboclinhas postas a mastigar como bem descreve, excitado, o cronista Hans Staden.
A crônica conservadora do Nordeste não levava a sério a cachaça que os viajantes estrangeiros já não receavam identificar como a bebida brasileira. Há todo um riquíssimo acervo de estudos sobre o açúcar, enquanto a cachaça, que faz parte desse ciclo, sempre foi ocultada.
Se a história partisse das raízes populares, como sugere Ana Flávia, se fosse apurada de baixo para cima, se as suas fontes viessem de fontes naturais, a cachaça teria sido tratada como o vinho, sob efeito do qual caminham todas as civilizações, chegando-se a insinuar que o vinho antecede o pão.
As outras regiões produtoras, como Minas e Rio de Janeiro, mudaram de ótica, de comportamento a partir da modernização da cachaça, sem deixar de alinhar-se ao folclore tradicional. Na nossa Paraíba, até as menções são raras, salvo na poesia popular. Aparece uma ou duas nas anotações de Beaurepaire Rohan e não recordo de ter vista muita coisa nas edições da história contemporânea.
No entanto a cachaça dispensa os favores da história formal. Tem sobrevivido sem ela, salvo apanhas ao estilo de Luiz da Câmara Cascudo, que lhe dedicou rico verbete em seu Dicionário do Folclore Brasileiro e um ensaio que ele próprio chamou de Prelúdio da Cachaça, colhido através dos livros que pavimentaram a viagem de toda a sua vida, Brasil a dentro e além-mar, resgatando a inventiva e a graça do seu povo. Mário Souto Maior deu-nos o Dicionário Folclórico da Cachaça, cuja riqueza tem a virtude de se amparar na “cor local”.
Velha de 500 anos, foi mantida por baixo do pano mesmo que o preconceito se traísse no hálito de muita gente da elite. Na revolução pela república verdadeira de 1817, a aristocracia política que a liderava trocou as taças do vinho europeu de seus banquetes pela cachaça destilada nos alambiques de Pernambuco e, notadamente, da Paraíba. Num trabalho que fiz para a associação dos produtores paraibanos foi preciso valer-me da crônica de Rubem Braga que estranhava não fosse a cachaça reconhecida e erigida em bebida nacional.