Edeltrudes reaparece depois de um sumiço de meses. Para quem não sabe, esse é o nome que dei à minha lagartixa de estimação. Durante ...

A volta de Edeltrudes

Edeltrudes reaparece depois de um sumiço de meses. Para quem não sabe, esse é o nome que dei à minha lagartixa de estimação. Durante noites ela cruzou a parede do escritório e ficou me olhando com aquele ar ancestral próprio das lagartixas. Isso aconteceu tantas vezes, que se estabeleceu entre nós uma familiaridade silenciosa, feita de contemplação e mudo espanto.

Ela me fitava e assim permanecia por várias horas, como se quisesse me desvendar. Eu a olhava, voltava a ler ou escrever, e depois levantava de novo a vista – lá estava ela de focinho arqueado, balançando quase imperceptivelmente a cabeça.A casa dormindo, a família ressonando,
Cmix
Edeltrudes era naquelas horas a minha única companhia. Imóvel, só se abalava para engolir, num gesto rápido, algum mosquito que aterrissara junto dela. Deglutia-o com um enorme pudor, a mandíbula imóvel, como se fosse feio mostrar que precisava comer.

A presença de Edeltrudes era como um símbolo vivo da imobilidade do tempo, que de noite parece tecido de sombras e medos. O período anterior ao sono é sempre enigmático e assustador. Ver Edeltrudes ali pregada, dizer-lhe boa-noite e apagar a luz era como ter a garantia de que ia haver o dia seguinte.

Depois a lagartixa se cansou de mim e desapareceu. Eu não sabia se ela tinha morrido ou se encontrara outra melhor parede – ou algum “dono” mais interessante, pois lagartixas não são como cães. E de repente vejo-a de novo, brancosa e paciente, como se sempre tivesse estado ali. Que garantia tenho de que a Edeltrudes de agora é a de anos atrás? Não seria outra, parecida com a primeira?

Isso tem pouca importância. Conforta-me pensar que a lagartixa que ora invade o meu espaço de trabalho
Green me
é a mesma que um dia me conheceu, foi embora e acabou sentindo saudade. E voltou para me dizer que nunca é tarde para a gente restabelecer uma afeição.

Tem bichos que transformam o relacionamento num eterno saldo a pagar. Cobram-nos exclusividade com o afã de certos humanos cuja carência é impossível suprir, e terminam nos oprimindo com o seu amor. Edeltrudes, pelo contrário, é de uma ternura quieta e silenciosa.

Além do mais, tem a difícil virtude da conveniência; sabe desaparecer quando é preciso. Durante o dia, vendo-me envolvido com pessoas e coisas, tem a generosidade de não me deixar preocupado com ela. Esqueço que existe, e nem por isso ela se ressente e me abandona. Pelo contrário: mal entro no escritório, vejo-a em sua clássica posição – imóvel, serena e aparentemente eterna. Como se no íntimo dissesse: “Não te espantes com a minha fidelidade. Venho de furnas e cavernas imemoriais, e nada exijo daqueles a quem amo”.

Alguns podem achar Edeltrudes asquerosa, mas em matéria de amor de bicho foi o melhor que consegui. Consolo-me pensando que, mesmo no domínio das afeições humanas, há escolhas piores. Minha lagartixa vale mais do que muita “víbora” que anda por aí...

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  1. Ângela Bezerra de Castro20/9/22 14:02

    Sua crônica me comoveu, não apenas pelo lirismo da escrita. Trouxe de volta a saudade de Zefinha e Mariquinha, duas lagartixas que criei. Sei a repercussão desse olhar silencioso e quanto nos conforta aquela cabecinha que se move parecendo agradecer nossa amizade, concordar com nossos pensamentos mais recônditos. Sua conclusão é das mais sábias. No amor que os animais nos dedicam não existe traição.

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  2. Grato pelas generosas palavras, Ângela. Vindas de você, elas me gratificam muito. A propósito, eu não imaginava que alguém (fora eu) tivesse amizade por lagartixas. Agora me sinto menos solitário em minha idiossincrática escolha rsrs. Como você bem ressalta, há nelas um resquício de ancestralidade que nos sensibiliza e nos desperta a memória de outros tempos.

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