Antes que alguém (algum espírito de porco) pergunte o que é que nós brasileiros temos a ver com a rainha da Inglaterra, respondo logo: Em princípio, nada. Mas, pensando bem, numa visão menos estreita, como simples ocidentais, temos, sim, alguma coisinha a ver com aquela senhora que morreu na última quinta-feira, aos 96 anos, depois de reinar por setenta anos no Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) e de se tornar, sem nenhuma dúvida, um dos maiores e mais populares ícones mundiais da segunda metade do século XX até hoje. Mesmo os mais exaltados republicanos, reconheça-se, haverão de ter a imagem dela gravada na mente, tanto ela esteve cotidianamente presente nos meios de comunicação do mundo inteiro, ao ponto de incorporar-se ao imaginário coletivo, semelhante a uma marca planetária, tipo Coca-Cola, McDonald’s e outras de igual porte e penetração. Por isso, ela era pop – e continuará sendo ainda por muito tempo.
A palavra “pop”, sabemos, é uma abreviatura, tanto em inglês como em português, de “popular”. Aplica-se muito com relação a artistas, tipo “fulano é pop”, e à própria arte sem pretensões eruditas. Por sua vez, popular refere-se a democrático, pois tem a ver com “povo”, do latim “populus”, mas também com notoriedade (ser muito conhecido) e com simpatia (contrapondo-se a impopular). Tomando-se estas acepções, vemos que a realeza, seja onde for, em tese, por sua natureza intrínseca, tem tudo para não ser popular. E, no entanto, a rainha Elizabeth II era pop, no melhor sentido da palavra. Alguém contesta?
Não sei se o leitor concorda, mas, para mim, à medida em que ia envelhecendo, mais simpática a rainha ia ficando. Afinal, quem não simpatiza com uma velhinha elegante e de sorriso largo? Só mesmo os de coração desalmado. Sua figura, cada vez menor fisicamente, mais encurvada, nos últimos tempos adornada por uma bengala, os vestidos de cores as mais diversas, cuja escolha, soube, tinha a ver com razões de segurança, e a sempre presente bolsa e o infalível colar de pérolas, marcas suas há décadas. Tão presente e tão popular tornou-se, que Andy Warhol, o artista plástico norte-americano, retratou-a, assim como fez com outros ícones do século passado, a exemplo de Marilyn Monroe, Elisabeth Taylor, Elvis, Mao etc.
Em setenta anos de reinado, sua grande característica pessoal, como chefe de estado, foi o silêncio. Dela, diz-se que “raramente falava, mas era sempre ouvida”. Levou muito a sério seu papel constitucional de monarca que não deve interferir nunca nas questões políticas e de governo. Seu poder era mais simbólico que efetivo, mas nem por isso era pequeno, sabíamos todos. Discreta, soube impor sua presença nos grandes acontecimentos mundiais das últimas sete décadas. Diante dela, curvaram-se inúmeros primeiros-ministros, desde Winston Churchill, seu amigo e insuperável professor na arte de reinar sem governar, mantendo unido o reino que herdou do pai aos 25 anos de idade, uma mocinha desde sempre muito responsável e cônscia de seus deveres reais.
Foi a derradeira das grandes figuras públicas que lhe foram contemporâneas no século XX, como Churchill, De Gaulle, Kennedy, Mao, Margaret Thatcher, Indira Gandhi, Mitterrand e Fidel. Ela sobreviveu a todos e por pouco não alcançou os cem anos de vida, como sua mãe, que morreu aos 103 anos de idade, ainda lúcida e tomando várias doses de gim por dia. Sua disposição impressionava a todos até recentemente. Parecia que era imortal, enquanto o filho Charles envelhecia a olhos vistos. Dizia-se, brincando, que seria sucedida diretamente pelo neto William, tal a sua saudável longevidade. Trabalhou normalmente até o fim: dois dias antes de morrer, deu posse à nova primeira-ministra britânica, Liz Truss.
Seu legado para a monarquia no Reino Unido é imenso. Seu longo reinado já faz parte da história de seu povo, tão importante – ou mais – do que o de sua xará Elizabeth I e o de sua ascendente Vitória, todas grandes rainhas e grandes mulheres. Se há uma palavra que traduz sua passagem pelo trono, essa palavra é estabilidade. O Reino Unido, nos últimos setenta anos, conheceu muitas turbulências políticas, econômicas, sociais e culturais. Mas a presença serena e sóbria de Elizabeth II garantiu a unidade do reino e seu prestígio internacional, mesmo sem o protagonismo exercido até a Segunda Guerra, quando o império no qual “o sol nunca se punha” cedeu lugar aos EUA, à URSS, ao Japão, à Alemanha e à China na cena mundial. Coube a ela preservar um pouco (ou muito) da antiga grandeza britânica decaída, assim como a De Gaulle coube recuperar um pouco (ou muito) do orgulho da França, diminuído após a ocupação nazista, em 1940.
Outra palavra que a define é serviço. É muito provável que nenhum outro monarca tenha servido à Coroa britânica com uma dedicação igual à dela. Pode-se afirmar, sem erro, que ela realmente serviu ao cargo e não o contrário, como é de praxe acontecer, principalmente nas repúblicas – e ainda mais nas “bananeiras”. Ser rainha, para ela, e desde o primeiro dia de reinado, representou muito mais sacrifícios do que benesses. E ela soube cumprir belamente a missão que recebeu ao nascer como a primogênita de seu amado pai. Jamais alguém a viu em fúteis badalações ou em mundanas frivolidades. Seu compromisso diuturno sempre foi com o dever, apenas e tão somente com o dever. Neste particular aspecto, ela nos lembra muito Pedro II, nosso rei-filósofo tão austero.
Para muitos, a monarquia é coisa do passado. Pode até ser. Mas o charme discreto da rainha fez com que se conservasse, não só para seus súditos, toda a “mística” da Coroa, seus rituais incomparáveis, seus mistérios fascinantes. Não há republicano que resista à beleza solene dos funerais, das coroações e dos casamentos reais britânicos. São incomparáveis em sua grandiosidade de organização, de fausto e de detalhes significativos. Nada fica ao sabor dos imprevistos e dos improvisos. É o próprio retrato da civilização. Uma civilização em que a tradição e a história contam muito, como valores importantes da nação.
Vai fazer falta na cena mundial a digna senhorinha que foi tanto, mesmo sem ter nenhum poder oficial. Acostumado que estava com sua presença diária na mídia e nas redes sociais, sentirei sua ausência, nestes tristes trópicos, como a de uma avozinha afável que deixa ternas saudades.
God save the queen!