Quando se fala “veja no Aurélio” ou se pergunta “como está no Houaiss?” prontamente se associam as expressões aos verbetes que estão re...

Um erudito das letras que virou senhor de engenho

historia lingua portuguesa antonio morais silva
Quando se fala “veja no Aurélio” ou se pergunta “como está no Houaiss?” prontamente se associam as expressões aos verbetes que estão registrados nos dicionários da língua portuguesa elaborados sob a coordenação de Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss. Mas, já houve um tempo em que o sinônimo de dicionário de português era “Morais”, ou “Moraes” como era escrito o sobrenome do seu autor nas primeiras edições do léxico. Para o respeitado crítico literário Wilson Martins o “Dicionário da Língua Portuguesa”, publicado, em 1789, por Antônio de Morais Silva
historia lingua portuguesa antonio morais silva
Fonte: Brasiliana
“tornou-se logo um clássico – posição que conserva até hoje”.

Antônio de Morais Silva, conforme escreveu Pereira da Costa, o seu mais completo biógrafo, era “filho único, nascido na abastança”, no Rio de Janeiro, onde teve esmerada educação, o que lhe possibilitou, em 1774, aos 19 anos, já estar matriculado nos cursos jurídicos da Universidade de Coimbra. Um jantar em comemoração a sua formatura, em dia de jejum obrigatório determinado pela Igreja, levou a que ele e alguns concluintes que participaram da festividade fossem punidos pela implacável Inquisição portuguesa. Para escapar da prisão, Morais fugiu para a Inglaterra.

Durante oito anos, Morais Silva esteve ausente de Portugal. Obteve o cargo de secretário nas embaixadas portuguesas na Inglaterra e, depois, na França, o que lhe permitiu tempo livre e boas bibliotecas para que ele prosseguisse nos estudos das línguas inglesa, francesa e alemã. Nesse período, fez traduções de alguns livros para o português, uma delas, que não chegou a concluir, foi “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Decidido a regressar para Portugal conseguiu em Roma um indulto para, na volta, não ser incomodado pelo Santo Ofício. Em 1788, Morais publicou em Lisboa a sua tradução para a “História de Portugal”, obra escrita, em inglês, por vários autores. No ano seguinte, saiu o seu afamado Dicionário.

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O Dicionário Morais indicava no título que o léxico reformava e acrescentava a um dicionário que havia sido elaborado pelo padre inglês Rafael Bluteau que, ao 29 anos, se estabelecera em Portugal. Apesar do título do dicionário, Wilson Martins não considerava Morais um mero compilador da obra de Bluteau, mas um criador de várias inovações linguísticas, a exemplo da introdução de “novidades ortográficas que perduraram para sempre”.

Segundo o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, Morais decidira escrever o dicionário como uma forma de vingança das zombarias que recebera, por falar e pronunciar incorretamente o português, quando estudante em Coimbra. Para Octavio Tarquinio de Sousa, Morais teria se tornado dicionarista “por uma espécie de reação nativista ou oposição ao meio português”. No prólogo da primeira edição do seu dicionário o lexicógrafo chega a abordar o assunto:

“A ignorância, em que eu me achava das coisas da Pátria, fez que lançasse mão dos nossos bons Autores, para neles me instruir, e por seu auxílio me tirar da vergonha, que tal negligência deve causar a todo homem ingênuo. Apliquei-me pois à lição deles, e sucedia-me isto em terra estranha, onde me levaram trabalhos, desconhecido, sem recomendação, e marcado com o ferrete da desgraça, origem de ludíbrios, e vitupérios, com que se afoitam aos infelizes as almas triviais”.
Universidade de Coimbra ▪ Portugal ▪ Séc. XVIII
Em 1794, Morais se transferiu para o Brasil acompanhando o seu sogro e abriu uma banca de advocacia no Recife. Por essa época, recusou uma nomeação para Juiz de Fora na Paraíba, mas aceitou o mesmo cargo na Bahia, onde ficou por um ano. De volta a Pernambuco, o dicionarista adquiriu um engenho na Muribeca, arredores do Recife, e enveredou pelas atividades na lavoura da cana e no fabrico do açúcar, mas sem deixar de continuar trabalhando na revisão do seu dicionário, cuja segunda edição saiu em 1813 e, na qual, ele escreveu: “o meu intento é explicar apenas o que aparece como português estreme”. Para Wilson Martins:

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Wilson Martins
“Isso era dito em 1813, data certamente culminante no processo de amadurecimento da consciência nacional destinado a produzir logo depois os seus frutos políticos no episódio da Independência. O Dicionário de Morais, sem nada ter de especificamente ‘nacionalista’, no sentido restrito da palavra, era, entretanto, um sintoma incontestável: ele indica que um brasileiro já se sentia legitimamente autorizado a se pronunciar em matéria linguística, que é o ponto mais sensível da suscetibilidade nacional (tanto mais delicado quanto, no caso, tocava nos preconceitos mentais dos portugueses metropolitanos com relação aos colonos brasileiros, que o Dicionário, precisamente, vinha desafiar)”.

Em 1817, irrompia no Recife uma rebelião de inspiração republicana que se alastrou por outras províncias, principalmente, pela Paraíba e pelo Rio Grande do Norte. Morais era o nome de maior expressão intelectual residente em Pernambuco. Além do mais, era capitão de Ordenanças em Muribeca e capitão-mor da vila de Santo Antônio, no Recife. Espírito conservador, legalista intransigente e partidário do Rei, o dicionarista recusou todos os convites que lhe foram dirigidos pelos chefes revoltosos para participar do governo provisório da insurreição e se utilizou de várias manobras para não colaborar com a junta governativa revolucionária, que acabou tendo uma vida breve de apenas dois meses.

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Casa grande do Engenho Novo de Muribeca dos Guararapes ▪ Gravura do Séc. XIX
Fonte: Jaboatão Redescoberto
A fidelidade de Morais ao Rei D. João VI também fez com que ele, inicialmente, não se mostrasse receptivo ao movimento da Independência do Brasil. Para o seu biógrafo Pereira da Costa, “esse procedimento hostil de Moraes Silva em todas as manifestações políticas de um povo em prol da sua liberdade, é óbvio, acarretaram-lhe odiosidades taes, que chegaram mesmo a explodir em doestos á sua pessôa”.

Morais Silva ainda trabalhou na terceira edição do seu dicionário, que saiu, em 1823, em Lisboa. As outras sete edições do Dicionário Morais não tiveram mais a participação do senhor do Engenho Novo da Muribeca. Em julho de 1824, uma nova rebelião de caráter republicano rebentou no Recife. O velho lexicógrafo e renitente reacionário Antônio de Morais Silva não pôde, desta vez, se posicionar novamente contra um movimento revoltoso, porque havia falecido três meses antes.

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  1. Muito bom! Não sabia da vida do grande dicionarista. Parabéns 👏🏽👏🏽👏🏽

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  2. Excelente, Flávio.

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