Uma das vantagens de se morar num lugar que tem as quatro estações bem marcadas é ter uma voz constante a advertir sobre a passagem do tempo e, em consequência, sentir-se permanente alertado sobre o que realmente importa na jornada. No começo da primavera deste ano eu me fiz a solene promessa de passar a maior parte do tempo de vida que me resta em contemplação. Não que me faltem problemas – choro e ranger de dentes fazem parte do cardápio de todo vivente – mas à medida que envelheço, me dei conta que já não tenho tempo e energia a gastar com quem fermenta e piora as dificuldades naturais da vida. E isso inclui a mim mesma, pois, espiando direitinho nas gavetas da minha alma, encontrei uma tendência para criar armadilhas para consumo próprio.
Era uma gaveta larga. Tive de amarrar um lenço na cabeça, arregaçar as mangas e começar uma faxina geral. Durou meses, mas dei adeus, sem olhar para trás, para tudo o que me causa aflição desnecessária. Escondida bem no fundo da tal gaveta encontrei uma dessas armadilhas camufladas, a autocobrança. Sob sua influência, eu me exigia demais, vítima de um perfeccionismo que estava deixando de ser saudável. Não mais. Despedi-me dele.
Abraçar a contemplação das coisas que estão ao alcance da vista talvez seja o que mais próximo encontrei da felicidade possível. Viver simplesmente, sem sobrecarregar os outros, sem sobrecarregar a mim. Ontem à tarde, o gato Mochi dormia com os bigodes agitados pela brisa e eu olhava as flores recém-nascidas na árvore que se debruça sobre a minha sacada. Senti, subitamente, uma alegria quase infantil só de lembrar que nessa época do ano as árvores da Califórnia estão cobertas de flores rosadas, roxas, vermelhas e brancas e, quando o vento as toca, elas dançam como bailarinas no calor das tardes. Saí para vê-las.
San Jose não é a mais bonita nem a mais famosa cidade da California. Apenas um lugar cheio de gente trabalhadora, custo de vida exorbitante, pessoas sem teto, imigrantes se esforçando para sobreviver e engenheiros do Vale do Silício sonhando ser o novo Steve Jobs. Mas se a gente prestar atenção, tudo isso constitui a substância da vida e, de bônus, há bastante beleza em estado puro: flores trepassadas pela luz, árvores com frutos dourados, ruas engravidadas pela poesia e até algo que só vi nesta terra: coelhos de rua devorando a grama dos jardins de casas vitorianas que têm torres iguais às dos contos de fadas. Basta olhar.
Hoje vou tentar ver o mar, que sempre põe no meu coração uma irresistível vontade de abrir bem os olhos para captar o segredo das ondas que põem rendas na areia. Um rendado tão breve quanto a nossa passagem por esse mundo.
O mar me faz ter vontade de tudo perdoar, de nada complicar.
Viver simplesmente, enchendo a alma com a graça ao alcance dos olhos.