Seu Milton era uma figura. Uma figuraça, como se costuma dizer na gíria. Se Seu Milton fosse um personagem seria um personagem-tipo. Ma...

Seu Milton, meu pai

homenagem pai familia
Seu Milton era uma figura. Uma figuraça, como se costuma dizer na gíria. Se Seu Milton fosse um personagem seria um personagem-tipo. Mas não aquele personagem-tipo congelado no seu perfil. Ele seria um tipo muito complexo com perfis muito marcados. Começa que Seu Milton era um dublê de açougueiro e carteiro. Acordava às madrugadas, para ir ao seu açougue no Mercado Central, trabalhava durante toda a manhã, e do meio dia para a tarde saía para o seu expediente no então DCT, Departamento de Correios e Telégrafos. Foi desse modo que conseguiu alimentar, vestir e educar nove filhos. Claro, sempre contando com o concurso de D. Zezé, minha mãe,
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incansável trabalhadora de três expedientes, dois fora de casa e um em casa.

Voltemos a Seu Milton, pois a história hoje é dele. Conseguiu, fazendo dupla jornada, às vezes tripla, fiscalizando jogo de cartas, educar nove filhos e alguns netos. Não fez curso superior quem não quis. Não teve vida melhor quem não se interessou. As condições, mesmo parcas, às vezes, nunca faltaram. Além desse dublê de açougueiro e carteiro, de onde vem, sem dúvida, meu amor pela carne, o andar de passo estugado e o saber orientar-me – deem-me o nome da rua e eu chego lá! –, Seu Milton era um pedagogo nato, sintético, que faria o pedagogismo débil de hoje tremer nas bases. Suas lições eram incisivas: “Não quer estudar? Vai virar carroceiro ou pegar frete na feira”. Um dos meus irmãos, quando viu passar diante de casa um ferreiro conhecido, Seu João Pé-de-Leque, com o pescoço enterrado embaixo de um balaio, onde havia, pelo menos, duas arrobas de inhame, resolveu que estudar era bem mais leve. Hoje, é doutor, professor da universidade e um dos maiores teóricos de literatura que conheço. Não fosse a pedagogia de Seu Milton...

Não era porque não nos amasse. Amava, mas sabia que palavrórios irritavam e não faziam tanto efeito quanto a brevidade crua de uma sentença. Trabalhador desde a infância, só se aposentou na compulsória. O hábito de acordar cedo e ir trabalhar, contudo, o acompanhou até o final da vida. Como não trabalhava mais, ficava indo e vindo do mercado central comprando o de que necessitava aos poucos. Era uma forma de se ocupar. A outra era a leitura. Leitor voraz, terminou em dois dias
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o massudo exemplar Os Bórgias, de Mário Puzo, que lhe dei de presente.

Sua preocupação com o conhecimento – o ignorante e tolo ele chamava de boi, cujo coletivo, obviamente era o gado – fazia-o preocupado com que aprendêssemos, embora de modo mais sutil do que nossa mãe, que usava argumentos mais convincentes como a sandália e o cinturão. Sua arma, como já disse, eram as sentenças. O conhecimento, a curiosidade que alimenta o saber o atraíam e ele procurava repassar a todos nós com as sabatinas domingueiras (sim, sei, sabatina vem sábado, mas as nossas eram no domingo). Ficava particularmente orgulhoso quando um filho se sobressaía, embora não o expressasse verbalmente. Mas eu sentia isto.

Suas sentenças educativas se resumiam a um “Os exemplos estão aí, só não vê quem não quer”. Crítico literário minimalista, mas de tiro certeiro, muito antes do pós-modernismo minimalista. Leitor voraz, se o escritor era bom, sentenciava: “Sabe ler e escrever!”. Se o escritor não prestava, saía-se com um “Escritor rabo de cabra! O livro é m.... pura!”. Não errava um. Linguista de mão cheia, criou um léxico todo próprio que se tornava indecifrável para quem não o conhecia de perto: “O guela, na moita, enganou o boi que queimou o milho todo e ficou cheio de parrá-pá-pá”. Duvido que alguém aí tenha entendido!

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O seu perfil de enfezado é o que faz mais sucesso na família. Tenho certeza de que criaram o personagem Seu Saraiva, ainda nos tempos do saudoso comediante Ary Leite, por causa de Seu Milton. Odiava perguntas idiotas e tinha sempre na ponta da língua uma resposta ferina. Quando chefe dos Correios de Arara, a matutada chegava sempre com perguntas do tipo: “Seu Mirto, São Paulo mandou carta?”. Ele respondia: “São Paulo é um santo, minha senhora, não manda carta para ninguém. Agora, a mala do Correio com cartas vindas de São Paulo ainda não chegou”. E por aí vai.

Foi com Seu Milton que aprendemos a valorizar a memória, durante as perguntas e respostas da sabatina dominical, para aumentar a mesada, que ele chamava, por ter muita gente para receber, de “Pagamento da Portela”. Eram tantos os filhos e netos que parecia o contingente de empregados da fábrica de cimento Portela. Aprendemos o raciocínio rápido e, sobretudo, a decência e a dignidade. Não era homem de efusão de sentimentos,
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Milton Marques ▪ "Seu Milton"
mas amava muito a todos nós e era capaz de gestos largos de generosidade. A prova maior de seu amor é o fato de que ele se doou e desdobrou em trabalho para que fôssemos “gente”, algum dia. Sua importância para nós foi tamanha, que, há vinte anos, quando me perguntaram em quem eu votaria para ser o paraibano do século, não tive dúvidas: Seu Milton. Me perguntaram quem era seu Milton, respondi que era meu pai e que ninguém poderia ser o paraibano do século se não ele.

Lembro que tínhamos uma obrigação incontornável aos domingos: lavar o açougue em que ele vendia carne durante a semana. Ao final do dia, chegava o marchante, Seu Dedeu, para fazer as contas do boi do sábado e do domingo. Feitas as contas, Seu Dedeu levava todos nós na sua caminhoneta até em casa. Antes, ele parava no antigo Bar Luzeirinho, na Vasco da Gama, para tomar uma cerveja com papai, enquanto nós tomávamos guaraná. A satisfação de meu pai não era a cerveja, mas a conta. Quando chegava a conta, ele nos dava para conferir se estava certa ou não. Por mais de uma vez, constatamos erros. Seu Dedeu ficava impressionado e dizia “Esses meninos de Milton são uns danados!”. Meu pai inchava de orgulho, afinal nós sabíamos ler, escrever e fazer contas.

Criou nove filhos, assim, junto com minha mãe, calado, sentencioso, mas orgulhoso de ver que nenhum se perdeu.

A bênção, Seu Milton!

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  1. Ångela Bezerra de Castro20/8/22 10:31

    Mil, esse é o verdadeiro pai herói. O que se sacrifica para dar um futuro aos filhos. Em geral, anônimos. E exemplos de coragem e de sabedoria aprendida nos desafios da vida. O seu amor e sua admiração de filho agradecido valorizam o exemplo.

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