O título se refere a uma passagem de um poema de Hesíodo, Trabalhos e dias, escrito no século VIII a.C., que nos admira pela sua atualidade. A passagem trata dos homens da raça de ferro, idade mítica em que a humanidade se entrega à total degradação, desconhecendo-se, caluniando-se, agredindo-se, invejando-se, matando-se, em busca de poder, não importa se o custo disso é a propagação do mal. Em tradução nossa, o texto final (versos 190-201) correspondente a essa idade dos homens, diz o seguinte:
e não existirá nenhum prêmio ao leal ao juramento, nem ao justo,
nem ao bom, mas, antes, terão honrado o homem realizador de males
e a desmedida: a justiça será a força e o sentimento de honra
não existirá, e o homem mau lesará o homem superior,
falando com palavras tortuosas, e pronunciará um falso juramento,
e a inveja acompanhará a todos os seres humanos lamentáveis,
a inveja maldizente, de olhar odiento, que se rejubila com o infortúnio alheio.
E, então, em direção ao Olimpo, afastando-se da terra dos largos caminhos,
tendo encoberto o belo corpo com véus brancos,
abandonando os homens, vão em direção à raça dos imortais
Pudor e Justiça, e deixarão tristes dores
Aos seres humanos mortais: e contra o mal não existirá socorro.
Nicola Fioravanti
Com o caso encerrado, não virá à tona o passado repugnante do grande homem honrado e, portanto, o imperador não será atingido. Os poderosos da justiça e da política, chamados por Zola de “gros bonnets” (literalmente “grandes bonés”, mas para nós, uma tradução mais condizente seria “alto clero”), os poderosos agem
Mohammad Afshari
À primeira impressão é de que o romance vai tratar como besta humana um personagem isolado, conforme sugere o seu título, inclinando-se na direção de Jacques Lantier, um condutor de trem. Aos poucos, no entanto, Zola vai aumentando a percepção do que antes parecia direcionado e particularizado, deixando as pistas para que o leitor avisado junte as peças. Erra, portanto, quem acha que a besta humana é o condutor de trens Jacques Lantier, que tem enormes dificuldades de conter o impulso assassino de mulheres dentro de si, para vingar todas as traições atávicas que as fêmeas possam ter feito contra os machos.
A besta humana tem mil fauces, todas prontas para ir devorando a estrutura social, sem que nos demos conta, porque se esconde atrás de pessoas, muitas vezes, insuspeitas e consideradas, diante da sociedade: a do guarda-barreiras Misard, que envenena lentamente a mulher, por causa de mil francos que ela não quer lhe dar; a da jovem Flore, também guarda-barreiras, que intenta o descarrilhamento de dois trens, com a intenção de matar Jacques e Séverine, de quem ela tem ciúmes, resolvendo ignorar a possível morte de pessoas inocentes, sob a alegação de não conhecê-los. A fauce de Séverine e Roubaud, sub-chefe de estação, que abrem a garganta de Grandmorin com uma faca, numa cabine de trem, este para vingar seu ciúme, aquela para purgar a violência sexual sofrida; a da própria Séverine, que tenta convencer Jacques a matar seu marido Roubaud; a de Grandmorin, rico e considerado, abusador impune de menores. A besta humana é todo esse conjunto de seres que formam a sociedade e fazem dela um corpo social doente. Não há, no entanto, pior e mais temível fauce do que aquela dos travestidos
Hal Gatewood
Socialista de verdade, Zola nos mostra que só o tolo acredita que a justiça se encontra naqueles que são pagos para exercê-la. Estes são movidos por todos os tipos de negócios ilícitos; raros são os que perseguem realmente os interesses da Justiça. Na França ou no Brasil, vive-se à mercê daqueles que, realmente, estão comando, fazendo e desfazendo da justiça, olhando com indiferença escarnecedora para a população que lhes paga os salários. As leis criadas para proteger o homem da natureza e do próprio homem se voltam, ironicamente, contra o homem. Vivemos na insólita situação de nos proteger da justiça. E quando precisamos de nos proteger da justiça é porque já perdemos de vez o sentido do humano e revivemos em nós a besta. Ainda mais irônico é ver como o trem La Lison é tratado como um ser humano, uma mulher mais especificamente, por Jacques Lantier, ao ver o seu fim, destruído pelo descarrilhamento: o homem faz-se besta, a máquina faz-se humana.
Diante disso, inermes e impotentes, estamos nós. Só nos resta buscar a única justiça que depende de nós próprios e que podemos controlar: a dos nossos atos cotidianos, de acordo com o que dita a nossa consciência, e assumindo as consequências de nossas escolhas.
E acreditem, meus caríssimos, não é fácil. Pudor e Justiça nos deixaram...