O título se refere a uma passagem de um poema de Hesíodo, Trabalhos e dias, escrito no século VIII a.C., que nos admira pela sua atualidade. A passagem trata dos homens da raça de ferro, idade mítica em que a humanidade se entrega à total degradação, desconhecendo-se, caluniando-se, agredindo-se, invejando-se, matando-se, em busca de poder, não importa se o custo disso é a propagação do mal. Em tradução nossa, o texto final (versos 190-201) correspondente a essa idade dos homens, diz o seguinte:
e não existirá nenhum prêmio ao leal ao juramento, nem ao justo,
nem ao bom, mas, antes, terão honrado o homem realizador de males
e a desmedida: a justiça será a força e o sentimento de honra
não existirá, e o homem mau lesará o homem superior,
falando com palavras tortuosas, e pronunciará um falso juramento,
e a inveja acompanhará a todos os seres humanos lamentáveis,
a inveja maldizente, de olhar odiento, que se rejubila com o infortúnio alheio.
E, então, em direção ao Olimpo, afastando-se da terra dos largos caminhos,
tendo encoberto o belo corpo com véus brancos,
abandonando os homens, vão em direção à raça dos imortais
Pudor e Justiça, e deixarão tristes dores
Aos seres humanos mortais: e contra o mal não existirá socorro.
Recorro a Hesíodo, após ter escrito um texto sobre A besta humana (La bête humaine, 1890), de Émile Zola, um romance cuja narrativa parte do assassinato de monsieur Grandmorin, presidente da companhia de trens da França, numa deixa para se documentar a vida dos trabalhadores ferroviários. Se diante da justiça os envolvidos são apenas suspeitos, diante dos olhos do leitor eles são inequivocamente culpados. A justiça, no entanto, opta por encerrar o caso. Não que lhe faltem provas, mas porque o morto, homem rico, poderoso, influente e comandante da Legião de Honra da França abusava de menores, uma delas Séverine, suspeita de ter ajudado o marido no seu assassinato.Com o caso encerrado, não virá à tona o passado repugnante do grande homem honrado e, portanto, o imperador não será atingido. Os poderosos da justiça e da política, chamados por Zola de “gros bonnets” (literalmente “grandes bonés”, mas para nós, uma tradução mais condizente seria “alto clero”), os poderosos agem não com o sentido da justiça, mas com os olhos e mentes nos interesses políticos.
À primeira impressão é de que o romance vai tratar como besta humana um personagem isolado, conforme sugere o seu título, inclinando-se na direção de Jacques Lantier, um condutor de trem. Aos poucos, no entanto, Zola vai aumentando a percepção do que antes parecia direcionado e particularizado, deixando as pistas para que o leitor avisado junte as peças. Erra, portanto, quem acha que a besta humana é o condutor de trens Jacques Lantier, que tem enormes dificuldades de conter o impulso assassino de mulheres dentro de si, para vingar todas as traições atávicas que as fêmeas possam ter feito contra os machos.
A besta humana tem mil fauces, todas prontas para ir devorando a estrutura social, sem que nos demos conta, porque se esconde atrás de pessoas, muitas vezes, insuspeitas e consideradas, diante da sociedade: a do guarda-barreiras Misard, que envenena lentamente a mulher, por causa de mil francos que ela não quer lhe dar; a da jovem Flore, também guarda-barreiras, que intenta o descarrilhamento de dois trens, com a intenção de matar Jacques e Séverine, de quem ela tem ciúmes, resolvendo ignorar a possível morte de pessoas inocentes, sob a alegação de não conhecê-los. A fauce de Séverine e Roubaud, sub-chefe de estação, que abrem a garganta de Grandmorin com uma faca, numa cabine de trem, este para vingar seu ciúme, aquela para purgar a violência sexual sofrida; a da própria Séverine, que tenta convencer Jacques a matar seu marido Roubaud; a de Grandmorin, rico e considerado, abusador impune de menores. A besta humana é todo esse conjunto de seres que formam a sociedade e fazem dela um corpo social doente. Não há, no entanto, pior e mais temível fauce do que aquela dos travestidos de julgadores, que usam a justiça para as suas próprias conveniências, corrompendo-a com seus interesses escusos, abrindo, assim, as portas para uma infinidade de crimes, por deixar de fazer o que lhes compete.
Socialista de verdade, Zola nos mostra que só o tolo acredita que a justiça se encontra naqueles que são pagos para exercê-la. Estes são movidos por todos os tipos de negócios ilícitos; raros são os que perseguem realmente os interesses da Justiça. Na França ou no Brasil, vive-se à mercê daqueles que, realmente, estão comando, fazendo e desfazendo da justiça, olhando com indiferença escarnecedora para a população que lhes paga os salários. As leis criadas para proteger o homem da natureza e do próprio homem se voltam, ironicamente, contra o homem. Vivemos na insólita situação de nos proteger da justiça. E quando precisamos de nos proteger da justiça é porque já perdemos de vez o sentido do humano e revivemos em nós a besta. Ainda mais irônico é ver como o trem La Lison é tratado como um ser humano, uma mulher mais especificamente, por Jacques Lantier, ao ver o seu fim, destruído pelo descarrilhamento: o homem faz-se besta, a máquina faz-se humana.
Diante disso, inermes e impotentes, estamos nós. Só nos resta buscar a única justiça que depende de nós próprios e que podemos controlar: a dos nossos atos cotidianos, de acordo com o que dita a nossa consciência, e assumindo as consequências de nossas escolhas.
E acreditem, meus caríssimos, não é fácil. Pudor e Justiça nos deixaram...