Marla... Era assim que suas irmãs a chamavam. Marla... Embora seu nome fosse Marlene. Mas, para mim, era simplesmente tia Marla. Quando eu era menino, ficava muitas vezes olhando para ela, admirando sua beleza... Eu ficava fascinado com a semelhança de seu rosto com o de minha mãe. E a voz , tão parecida com a de Mamãe, que às vezes me confundia...
Minha memória dela, a mais antiga de todas, me remete a uma visita que ela nos fez quando eu devia ter uns dez anos de idade. Ainda me lembro de quando fomos à praia de Tambaú e depois à Igreja São Francisco. Era uma linda tarde de sol. Fomos de ônibus, atravessando a longa Epitácio Pessoa e descendo na Lagoa. Os três, eu e o casal.
Tia Marla não tinha vindo sozinha nos visitar. Veio com seu noivo, que a gente chamava de Buá... Buá era alto, bonito e charmoso. Eu o chamava de tio Buá. Ele falava bonito, me parecia muito inteligente e sensível. Nos meus dez anos, fiquei maravilhado com a visita daquele jovem casal, dois artistas apaixonados um pelo outro, e também pela vida.
Tia Marla casou-se e foi morar em Natal. Tornou-se Marlene Galvão. Tio Buá, que se chamava Ubirajara Galvão, viria a ser um dos maiores arquitetos do Brasil. E Marlene Galvão passou a ser um nome de referência no meio artístico e cultural da cidade. Era de se esperar. Ambos eram exímios artistas, sobressaindo-se principalmente na pintura de quadros e murais.
Carmen, Marlene, Fernando e Elza eram filhos do casal Isaura e Clodoaldo Gouvêa. Clodoaldo fez história em João Pessoa como arquiteto. Não me foi dada a sorte de conhecê-lo. Isaura, minha avó, que morava em Recife, me ensinava francês e fazia deliciosas sobremesas quando vinha nos visitar.
Tio Fernando, me ensinou a jogar botão, e foi quem me introduziu o gosto pelo futebol. Eu gostava muito dele.
Elza era minha segunda mãe, tornando-se a única, depois da partida da primeira.
Carmen, Fernando, Isaura e Elza, nessa ordem, partiram dessa vida. Carmen foi a primeira, partindo bem antes de todos, deixando uma lacuna enorme em minha vida que até hoje dói. Tio Fernando se foi prematuramente, inesperadamente, deixando muita saudade. Vovó Isaura viveu longamente, teve uma vida difícil no começo, mas foi sempre cercada de carinho pelos filhos e netos. Tia Elza, quando partiu, me deixou órfão pela segunda vez. Eu nunca havia imaginado como seria doloroso perder duas mães...
Mas, eu ainda tinha tia Marla. Seria ela agora quem me iria servir de referência. Era ela pra quem eu ainda telefonava, querendo ouvir sua voz... Que era, também, a voz de Mamãe. Eu sentia como se as duas fossem uma só. E assim eu conversava com Mamãe novamente. Pois bem, era tia Marla quem me contava coisas do passado de nossa família. Era a ela somente a quem eu ainda podia recorrer quando quisesse relembrar as primeiras páginas da minha vida... Como se estivesse folheando um álbum de fotografias. Com ela, com tia Marla, eu conversava horas pelo telefone. E no final vinha sempre o convite de ir vê-la pessoalmente... “Assim que puder irei vê-la, tia Marla”, eu dizia. Ir a Natal , revê-la, rever meus primos... Era um projeto para esse ano...
Hoje de manhã, ainda começando a viver meu dia, recebi a notícia. Tia Marla também havia partido. Foi a última a partir. Eu não esperava, embora soubesse que um dia ela iria também. A gente sabe, mas não espera... A gente compreende, aceita, mas sente o adeus...
Tia Marla partiu. Buá também partiu. Todos partiram. Todos partirão. Sempre foi assim. Sempre será. Mas, enquanto tivermos a memória, enquanto tivermos um álbum de retratos, podemos reviver momentos preciosos.
O passado é eterno. Tia Marla também estará presente nesse sentimento de eternidade. Ah, como foi bom tê-la conhecido, convivido e aprendido com ela. Resta um sincero sentimento de agradecimento.
Obrigado, tia Marla, por ter feito parte de minha vida!