Não quis incomodá-lo, por mais que saiba a hora do amanhecer dos homens da nossa idade. É que acordei julgando-me na calçada de livraria de Otacílio Gama, as mulheres de xale ou de mantilha se protegendo do sol molhado daquele fim de inverno para assistirem cedinho à missa da Misericórdia.
(Esse “sol molhado,” você sabe, é coisa do “Quarto minguante” do poeta José Américo. O poeta que ele escondeu na prosa desde a primeira novela.)
E assim me lembrei de você, como eu, concorrendo com as fiéis que abriam a igreja; nós dois abrindo a livraria de uma porta só do mais generoso, ou melhor, do mais bondoso e confiado dos livreiros.
Quis te chamar para essa volta saudosa aos anos dos nossos primeiros plantios fraternais de leitura e de pessoismo, mas tive o receio da inconveniência. Pedi, então, para me deixaram na cabeça da ladeira das cariocas, cariocas que não alcancei, trazidas, segundo a lenda, por um mecenas do amor para o desasno da rapaziada provinciana, e que perderam o nome, oficialmente, para o mais belo dos nossos heróis, Peregrino de Carvalho.
Desci devagar, freando os passos, essa curta ladeira que tanto exigia dos meus fôlegos após o magro e milagroso café da Casa do Estudante. Deixei a calçada do “18 andar” e entrei no bosque frondoso de oitizeiros de copas trançadas sobre a estátua de Aristides Lobo e dos demais e futuros idealistas solitários.
Um belo achado, Humberto. O busto do democrata republicano rebelado, não de baixo, mas no poder, se mantém incólume, sobranceiro, ao contrário do busto de Camilo de Holanda, erguido pelo prefeito Oswaldo Pessoa na balaustrada que, décadas atrás, tanto irritara o tio presidente. Se Camilo não construiu, concluiu essa praça, refúgio de espírito o mais aconchegante da cidade.
Aconchegante? É de veras a que particularmente me agrada, inspira e anima. Aconchegar no sentido de acolher, proteger, sinônimos talvez não incluídos no verbete tradicional. Não deve ter sido por outra que Virginius da Gama, dois ou três dias antes de finar, foi visto sozinho, sem ninguém que o desviasse dos seus pressentimentos.
Em praça nenhuma desta cidade as árvores se oferecem tão solidariamente em seu abraço. Nem na Lagoa, no parque famoso rodeado e alçado de palmeiras imperiais, sem sugerir nem inspirar outra sensação a não ser as de vida externa e beleza.
O conjunto, Aristides Lobo/Pedro Américo, desde muito é tido como Praça do Pensamento. Nela desembarquei meu sonho de poetinha ingênuo do interior, sentindo a continuação dos meus telhados verdes de origem. Nela me arrimei ao descer frustrado as escadas do aspirante ao primeiro emprego. Sempre tocou ou tangeu além ou aquém dos meus olhos.
“Enquanto o emprego não vem, você fica na banca de revista que posso montar na calçada do Cine Brasil” – propôs o livreiro. Eu de tarde, Inácio de manhã, ambos convivendo com o alarido ou o estado de graça dos que iam ou saiam do Grupo Escolar Tomás Mindelo, das matinês famosas do cine Brasil, das peças e concertos do Teatro, das vitrines de loja mais frequentadas, das falas da Assembleia, o jovem bultrim brejeiro esnobando o francês dos títulos das revistas de moda.
Ah, Humberto, foi melhor que eu descesse sozinho. Com a sua presença culta, menos exibida que seja, eu não teria pensado em voz alta nessa revista, não sei se em homenagem à cidade ou à nossa amizade.