… depois de sete anos sem querer saber de cinema Em 2002 ou 3, quando eu saía da estreia do cearense “Lua Cambará”, no Festival ...

O medo que me levou a ''O som ao redor''

… depois de sete anos sem querer saber de cinema

Em 2002 ou 3, quando eu saía da estreia do cearense “Lua Cambará”, no Festival de Cinema de Brasília, o cineasta paraibano Manfredo Caldas me alcançou no meio da multidão, segurou-me pelo cotovelo e disse:

- Mai tu tá muito ruim no filme!

E eu:

- Também acho.

Pra não dizer que nunca mais fiz nada, na área, em 2008 me ligaram para pedir-me uma pontinha no “Bezerra de Menezes – O Diário de um Espirito”, também cearense. Insistiram – ante minha recusa – dizendo “É apenas uma cena, que será filmada numa só manhã e aí perto, no Recife!” – e lá fui ser o Prof. Freire Alemão, um dos mestres do líder espírita na Faculdade de Medicina do Rio, eu, na verdade, numa sala em forma de anfiteatro da célebre Faculdade de Direito de Pernambuco.

cinema double aventura
Daí que, quando o cineasta Daniel Aragão – diretor de casting de “O Som ao Redor” ainda em fase de pré-produção – me ligou para um teste, eu disse “Não”. E ele: “Por que?” “Porque já vou fazer 70 anos e está na hora de criar juízo” - aleguei, mas ele insistiu mais. E tanto, que pedi o roteiro, pois seria fatalmente muito ruim e isso seria o meu duro argumento final para ficar de fora. Mas ao ler o script do Kleber, vi que estava diante de um projeto primoroso do primeiro longa sobre a classe média urbana nordestina contemporânea, coisa que, na verdade, eu vinha trabalhando em romances como “Israel Rêmora”, “Relato de Prócula” e “Arkáditch”. Mas – fora isso – uma sequência me segurou pela garganta: aquela em que o velho empresário de passado sombrio vai tomar banho de mar de madrugada, justamente ao lado da placa que se repete em toda a Praia de Boa Viagem: “Área Sujeita ao Ataque de Tubarões”.

- Caramba!...

Quanta coisa aquilo dizia!

Foi assim que – às 2:15 da madrugada (em função da tábua das marés), em agosto ou setembro de 2010, desemboquei de um beco, a pé, na Avenida Boa Viagem, no Recife, cruzei-a, olhando para a direita, vendo se não vinham carros (embora soubesse que na verdade, ela estava interditada para a filmagem), fiz que não vi a ambulância e o caminhão do corpo de bombeiros, nem a equipe técnica e os equipamentos do filme, tirei a camisa e os chinelos diante da mureta que serve de interminável banco na calçada, deixei os chinelos como peso sobre a camisa, pois ventava um pouco, e fiz o sinal da cruz enquanto descia para a areia, bem atrás da placa vermelha em que se lia “Área sujeita ao ataques de tubarões”.

Kleber, nas vésperas dessa filmagem:

DigArt
- Como vê – disse, levando-me ao local – aqui já não existem os avisos. Implantaremos um deles, que conseguimos com a prefeitura. OK?

- OK.

Na manhã seguinte, no entanto, voltei ao local. Vendo que não havia nenhum banhista na redondeza, puxei conversa com um vendedor de coco:

- Por que ninguém está nadando por aqui?

- Por causa dos tubarões.

- Tubarões?! Mas não há placa nenhuma dizendo isso.

- Não tem, mas quem é doido? Depois que fizeram Suape, isto aqui tudinho ficou infestado.

De modo que, na Hora H, Dia D, quase duas e quinze da madrugada, tudo pronto, a assistente de direção – Clara Linhart – aproximou-se de mim, que aguardava a ordem de entrar em cena, no beco, ela com os olhos inchados, notei, e me disse:

- Olha, você não tem de fazer a cena. A gente põe um dublê.

- Valeu, Clara, mas a sequência é importantíssima para o filme e eu ficaria me martirizando o resto da vida se falhasse com Kleber. Vou fazer a coisa, e fica tranquila: vai dar tudo certo.

Ela se juntou aos outros, ouvi sua voz passando as ordens do chefe, por um megafone:

- Atenção: luz! (acenderam-se grandes refletores cobrindo a avenida e o mar, lá atrás), - Câmera! – e, para mim:

- Aaação!

DigArt
Fiz que prosseguia a caminhada solitária e noturna que já rendera algumas filmagens anteriores, a partir do edifício em que morava, desemboquei em Boa Viagem, olhando para a direita, pra ver se não vinha nenhum carro, embora na verdade soubesse que o trecho estava interditado, fiz que não vi a ambulância e o carro do corpo de bombeiros – que estavam ali pra me socorrer, em caso de necessidade - tirei a camisa e a coloquei no banco de concreto, pondo as sandálias sobre elas, como peso, por causa do vento, virei-me para a escada de alvenaria e desci por ela, fazendo o sinal da cruz, ... bem atrás da placa vermelha onde se lia ÁREA SUJEITA AO ATAQUE DE TUBARÕES. Fiz que não vi, escondidos da rua e da câmera, ao pé do muro que sustentava a avenida, três salva-vidas parrudos e, exatamente no ponto combinado, me dirigi ao mar. Fui entrando, entrando, na rebentação das ondas pequenas, vi uma, boa, que chegava, mergulhei... e vi, deslumbrado, nadando, submerso, o enorme espaço iluminado (por causa dos refletores) como numa vasta vitrina, a água verde-esmeralda e aquela areia num belo ocre.

David Boca
Nadei, nadei, o foco da atenção em todas as locas escuras da muralha do arrecife lá adiante, alerta para algum tubarão, e aí um vagalhão passou, vi que poderia emergir, subi, e, já na superfície, nadei de volta, sob os aplausos aliviados de todo mundo, gritos do tipo “Esse mama em onça!”

Kleber me disse, rindo: “Você demorou muito dentro d´água, eu dizendo comigo mesmo: Suba, suba, suba!”

Cercado por assistentes com toalhas e secadores, pentes e escovas e um calção seco, igual ao anterior, tive de filmar tudo de novo.

- Só pra garantir a tomada. – disse-me Kleber - Aguarde, sempre, uma onda melhor ainda do que aquela.

Bom, não ganhei nenhum Oscar por aquilo.

mas valeu a pena.

(Trecho da 'AUTO B/I/O GRAFIA' do autor a ser lançada)

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