Gabriel García Márquez disse que todos nós temos três vidas: a pública, a privada e a secreta. Veja só. Pura verdade. É exatamente assim, intuímos, vivenciamos, no silêncio de nossa mais guardada intimidade. Uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta. É isso. A nossa vida verdadeira ou a verdade de nossa vida, onde estará, na primeira, na segunda, ou na terceira? Parece-me que na soma das três, porque somos seres fragmentados, feitos de várias partes, vários ângulos, nunca uniformes, nunca inteiriços, daí só mesmo um pintor cubista, a la Picasso, para nos retratar fielmente.
E não é preciso ser psicanalista nem nenhum gênio para perceber que nos encontramos mais à medida que transitamos da vida pública para a vida secreta, passando pela vida privada. O que prova que somos todos atores e atrizes, que nossa vida é um permanente teatro, em que representamos para os outros e para nós mesmos. Nunca somos o que aparece no palco - ou apenas o que aparece lá. Somos também o que se vê no espelho do camarim antes de se maquiar e o que vai sozinho para casa depois do espetáculo, de cara limpa – ou quase. Somos tudo isso e, portanto, ninguém nos conhece completamente. E nessa ignorância também nos incluímos, surpresos que ficamos, muitas vezes, com nossas reações inesperadas e imprevistas.
Alguém poderá achar que no divã do psicanalista até nossa vida secreta é desvendada. Puro engano. Quem já fez análise ou terapia sabe perfeitamente que nem tudo é revelado pelo paciente, há sempre um resíduo (um segredo?) que permanece oculto, deliberadamente ou não, fora das vistas e dos ouvidos alheios, como propriedade exclusiva, talvez como dignidade última, daquele e daquela que resiste ao desnudamento total. É como se disséssemos “nesta parte de mim, ninguém toca, ninguém penetra”. Não se pense, porém, que essa vida secreta esconde necessariamente nossas vergonhas e abjeções. Nem sempre. Às vezes o que se encobre nada tem a ver com questões morais, são simplesmente fatos ou sentimentos que nem justificariam o ocultamento, mas vá se entender o ser humano! Daí não ser fácil para o analista/terapeuta exercer seu ofício, que depende tanto - ou totalmente – da palavra aberta (ou disfarçada) do analisando.
Pergunto-me se essa vida secreta seria a morada de nossa mais autêntica individualidade, se ali residiria o nosso “eu” mais verdadeiro. Como saber, se também somos o que são nossas vidas pública e privada? Como indivíduos somos indivisíveis? A etimologia da palavra indica que sim. E se assim é, então somos necessariamente o conjunto do que somos publicamente, privadamente e secretamente. Num serial killer fica mais fácil identificar e distinguir essas três vidas numa mesma pessoa: temos, por exemplo, o trabalhador, ou seja, o que sai de casa para o trabalho (vida pública), o pai de família que volta para casa no fim do expediente (vida privada) e o assassino nas horas vagas (vida secreta). Muito bem. Mas no caso de um pacato cronista que não mata nem uma mosca?
É complexa nossa individualidade, como bem percebeu Garcia Márquez. E aqui entra a delicada questão do individualismo, que não se confunde com egoísmo, como equivocadamente pensam alguns. Individualismo que é sinônimo de humanismo, na medida em que põe todo indivíduo acima da espécie e da sociedade, opondo-se, assim, a toda forma de totalitarismo massificador. A dignidade do indivíduo, do ser humano em si mesmo considerado. O verdadeiro individualista, portanto, não prescinde dos outros, não considera os outros como sendo “o inferno”, como disse Sartre, já que o inferno provavelmente é justamente a ausência dos outros, a solidão, o isolamento, a falta de relacionamentos, imprescindíveis à nossa natureza social. Não quer isto dizer, evidentemente, que não precisamos da solidão eventual, do recolhimento, do silêncio.
Manuel Bandeira no poema Arte de amar escreveu que os corpos se entendem, mas as almas não. Sim, não é fácil o diálogo das almas, tomadas aqui no sentido do “eu” individual de cada um. Na verdade, todo diálogo é difícil. Nenhuma comunicação é fácil, nem a dos corpos, com sua linguagem vária e nem sempre clara.
Mas voltemos à nossa vida tríplice - e una. Tal como a Trindade dos cristãos, três pessoas em uma. Nenhuma vida é, portanto, um livro aberto. Quer nos enganar e se enganar quem afirmar que é transparente. Não. Somos mais uma Caixa de Pandora, cheia de surpresas. De tal modo, que em muitos casos é melhor não abrir.
Mário de Andrade escreveu que não era apenas um, mas trezentos, trezentos e cinquenta. Somos todos muitos, como o poeta. Provavelmente mais que trezentos e cinquenta.